CARDOSO, Dulce Maria. Os meus
sentimentos. Editora Tinta da China, 372 páginas.
Autor da resenha: Johnny Gonçalves
Este romance foi para mim uma descoberta surpreendente,
um caleidoscópio irretocável de palavras, um meticuloso quebra-cabeças erigido
com os mais delicados fragmentos da sensibilidade humana.
A autora, que é portuguesa e passou a infância na
capital angolana, possui estilo literário bem peculiar. As sentenças são
curtas, separadas por vírgulas, não há ponto final, parágrafo ou maiúsculas. Os
sentimentos se despejam incontidos, acumulam como um líquido amargo que penetra
devagar no corpo, um bitter que vai direto ao sangue e inebria o leitor. “Os
meus sentimentos”, aqui, podem ser compreendidos em seu sentido literal, mas
também representam a expressão de pesar, de condolências, que igualmente se
utiliza em Portugal. O texto de Dulce Maria Cardoso faz lembrar – de leve - o
de seu conterrâneo José Saramago, porém ela nos oferece uma dose aterradora de
lirismo e crueza. Sua eficiente fórmula de escrita acrescenta frases esparsas
no meio dessa torrente de palavras: o curso da leitura é interrompido por
lembranças faiscantes que criam associações mentais e iluminam a narrativa.
Essas reminiscências constroem a essência da protagonista e parecem reforçar o
ritmo aliterativo que caracteriza a nossa memória.
A história é narrada em primeira pessoa. Violeta, nome
de flor que é também uma cor (por sinal, a cor de panos funestos), compõe um
triste amarrado de sua vida a partir do momento em que se vê dependurada pelo
cinto de segurança, de cabeça para baixo, num baldio de estrada, após um
acidente de carro. Seus olhos se fixam no reflexo luminoso de uma gota presa ao
vidro do para-brisas. Violeta não sente dor física, sequer sente o peso de sua
abundante gordura, há um distanciamento tranquilo que faz emergir toda a dor
verdadeira, a dor que não está na carne, que é parte de sua natureza psíquica e
fruto amargo de seu passado.
Violeta se reconhece monstrenga em seu corpo
exorbitante. Sua falta de amor próprio parece reduzida a uma espécie de cinismo
sem esperanças. Quando era garota, entregava-se no escuro do cinema, deixava-se
apalpar e apalpava o sexo dos meninos que faziam fila para ter sua chance de
experimentar o prazer adolescente. Quando terminava o filme, os meninos riam-se
dela, enquanto as outras garotas bonitas saíam de braços dados com os seus
namorados. O sentimento de piedade que tem por si mesma já está gasto, também
já se transfigurou em cinismo sem esperança, mistura-se com um desejo de
punição.
Ela é uma vendedora de ceras para depilação, a melhor
vendedora que existe, sabe tudo sobre o assunto. Costuma viajar para fazer seus
contatos comerciais. Nas beiras de estradas, pratica a caça aos piores tipos
que lhe aparecem nos estacionamentos de caminhões. Possui um estratagema de
captura bem definido, finge que está perdida, procurando um caminho no mapa que
assenta sobre os joelhos. Entre a oferta calculada de seu corpo e o negaceio de
seu aspecto de puta barata, obtém satisfação de maneira sórdida e humilhante. A
cena em que ela faz sexo com um caminhoneiro no chão de um banheiro público em
uma noite chuvosa é terrível. O homem magro, bêbado, é apenas mais um em seu
rosário de mutilações do espírito. A cópula acontece sem medo e sem amor, sobre
o piso frio, incômodo, enquanto ela olha para uma mancha de umidade no teto e
pensa no encontro que terá logo mais com suas clientes. Seu tempo não é aquele.
Violeta é uma pedra que não permite que lhe brotem flores, as flores são
tolices. Violeta conhece o amor de ouvir falar.
Seu tempo não é o tempo de sua vida. Para mostrar isso,
a autora lança mão de uma cronologia que se liberta e vai tecendo um jogo de
espelhos com as experiências da personagem. No restaurante indiano, por
exemplo, último almoço que teve com a filha e o marido, a cena se alterna com o
rebuliço de um salão de beleza que ali existiu no passado. Dora despreza a mãe,
entre elas se trava um eterno combate, a luta dos que sabem se magoar. Violeta
vê na filha – o melhor pedaço de si - uma excelente adversária. É uma rival de
quem exige um amor improvável. Enquanto Dora se mostra irritadiça, tem vergonha
da mãe e anuncia que vai sair de casa, o pai põe água na fervura, sempre
imparcial diante das lâminas agressivas atiradas de um lado para o outro.
Ângelo, o marido, é um palhaço animador de eventos, um humorista sem talento.
Suas piadas são motivo de galhofa, sua mente gira em uma órbita muito distante
da realidade. Parênteses: os homens da história costumam ser bonecos
inanimados. No tempo paralelo que visita a memória de Violeta, os pratos e
talheres do restaurante, com a jovem em despedida de solteira na mesa ao lado,
são substituídos pelas bacias pretas, alicates e bonecas com cabeça de sabão do
antigo instituto de beleza. Celeste, a mãe conservadora de Violeta, a mãe
moralista que sempre viu na filha uma enorme desilusão, frequentava o lugar e
gostava de exibir seu francês très chic. Por entre os secadores de cabelo, as
funcionárias do salão recolhiam as migalhas das verdades mais intimas que suas
clientes partilhavam. Um mundo que foi varrido, passageiro como as modas. Corre
uma dança das verdades interiores e do patético da vida no restaurante e no
salão de beleza, e é nesses momentos que a coreografia traçada pela autora
atinge expressão mais sublime, transbordante de poesia, encantadora.
Há um ponto do livro, pouco depois da metade, em que
nos perguntamos: por que Violeta é assim tão dolorida, por que ela sente tanto
desprezo pelas pessoas à sua volta, que desgraça a faz enxergar a todos com
essa raiva cansada, que acontecimentos a transformaram nessa monstrenga capaz
de nos infundir, ao mesmo tempo, repugnância e uma piedosa simpatia? Torcemos
por ela, desejamos, seja lá por quais caminhos decida viver, que seja lavada
dessa angústia que envolve sua alma como uma casca escura, grossa e mal
cheirosa.
O pai de Violeta aparentemente enlouqueceu. Nas
palavras da narradora, foi arrancado ao hábito da loucura. Vive enfurnado em
seu viveiro de pássaros, de onde recolhe as aves que julga doentes e estala
seus ossinhos entre os dedos para lhes roubar o céu definitivamente. O governo
revolucionário assumiu o poder e a história de Baltazar, ligada à antiga ordem
ditatorial, é motivo de recriminação política. Ângelo é seu filho não assumido
de um romance extraconjugal, portanto é meio-irmão de Violeta. O palhaço, bufo
da vingança, passava dias especado no fim da rua a odiar os membros da família
do pai.
As injunções dessa tragédia familiar pesam como chumbo
sobre o destino de todos. É dessa opressiva história familiar que Violeta pensa
se livrar ao vender a casa dos velhos já mortos, um pai alienado e uma mãe que
desmontou os alicerces de sua auto-estima, além da empregada, Maria da Guia,
que contava sempre a mesma história de abandono de maneiras diferentes. Contudo,
ninguém corrige o passado, quando nos pomos numa vida não sabemos responder por
outra. E, no fim das contas, cada um ouve as histórias à sua maneira. Esse é o
tom de encerramento do romance, com as recordações de Violeta alçando uma ponte
para um futuro próximo, reafirmando que as histórias podem ser contadas e
compreendidas de maneiras diferentes, mesmo que seja a mesma pessoa a animar
suas personagens.
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