Considerado um dos mais lúcidos observadores
dos fenômenos da comunicação de massa no Brasil, o professor do Departamento de
Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Fluminense (UFF) Dênis de
Moraes, tem se dedicado a estudar como os governos de origens populares da
América Latina enfrentam o monopólio midiático, com legislações e políticas
públicas mais democráticas e inclusivas. Ele tem pesquisado, também, o
potencial da rede mundial de computadores como nova arena de embates pela
hegemonia política e cultural. Nesta
entrevista à MídiaComDemocracia,
o autor de A Batalha
da Mídia e Mutações
do visível: da comunicação de massa à comunicação em rede critica
o imobilismo dos sucessivos governos brasileiros frente à necessidade de se
democratizar a comunicação, o que coloca o país em descompasso com seus
vizinhos latinoamericanos.
E condena, em especial, a
falta de políticas consequentes de inclusão digital e de fortalecimento da
internet como ferramenta já indispensável à pluralidade de vozes sociais.
Por que a luta pela
democratização da comunicação é uma necessidade urgente da sociedade brasileira?
Dênis de Moraes –
A democratização do sistema de comunicação é uma exigência incontornável e
inadiável. A legislação de radiodifusão brasileira continua sendo uma das mais
anacrônicas da América Latina. Até hoje, não foram regulamentados os artigos
220 e 221 da Constituição promulgada em 5 de outubro de 1988, que,
respectivamente, impedem monopólio ou oligopólio dos meios de comunicação de
massa (art. 220, § 5º) e asseguram preferência, na produção e programação das
emissoras de rádio e televisão, a “finalidades educativas, artísticas,
culturais e informativas”, além da “promoção da cultura nacional e regional e
estímulo à produção independente que objetive sua divulgação” (art. 221, I e
II).
E como você avalia a ação do
Estado brasileiro neste sentido?
D.M. –
O imobilismo dos sucessivos governos chega a ser alarmante. As políticas
públicas de comunicação, quando existem, são absolutamente tímidas, limitadas,
fragmentadas e desencontradas. Não há uma visão estratégica, por parte do poder
público, sobre o estratégico campo da comunicação de massa. Isso é grave porque
as políticas públicas são indispensáveis para a afirmação do pluralismo, como
também para definir o que deve ser público e o que pode ser privado,
resguardando o interesse coletivo frente às ambições particulares.
E quais as consequências
deste imobilismo?
D.M. –
As consequências do imobilismo são de várias ordens. A concentração monopólica
da mídia não para de acentuar-se. De maneira geral, tem-se a percepção de que
os governos se omitem em relação a esse grave problema por receio de contrariar
os grandes grupos privados que controlam, há décadas, o setor. Persiste o
coronelismo eletrônico (concessões diretas ou indiretas de licenças de rádio e
televisão a parlamentares e políticos profissionais). Até quando vamos
testemunhar o fechamento de rádios comunitárias, com a apreensão, autorizada
pela Anatel ou por mandados judiciais, de equipamentos pela Polícia Federal e o
indiciamento dos responsáveis com base em dispositivos ultrapassados do Código
Brasileiro de Telecomunicações (1962) e da Lei Geral de Telecomunicações (1997)?
E qual o papel dos movimentos
de luta pela democratização da comunicação neste cenário? Eles têm cumprido
adequadamente o papel de diagnosticar e propor alternativas para este estado de
coisas?
D.M. –
Não é por falta de diagnósticos abrangentes e de proposições consequentes que
não se renova o sistema de mídia do Brasil. A 1ª Conferência Nacional de
Comunicação (Confecom), realizada em dezembro de 2009 com a expressiva
participação de delegados escolhidos por entidades da sociedade civil, pelo
empresariado e pelo próprio governo, foi um marco histórico em termos de
esclarecimento e discussão pública das questões comunicacionais, tendo sido
precedida por uma série de conferências estaduais e municipais. A Confecom
definiu os temas prioritários que devem ser enfrentados pelo poder público para
a democratização da comunicação no país. E, no entanto, quase três anos depois,
a imensa maioria das 633 proposições da Conferência, ao que se sabe, ainda não
foi incorporada à ação governamental.
Na América Latina, o quadro
parece bem diferente do brasileiro. Diversos governos progressistas e/ ou de
origens populares têm tomado medidas importantes para atacar os monopólios e
democratizar a comunicação dos seus países. Quais delas você destaca e como
acredita que impactarão nos sistemas de comunicação no continente?
D.M. –
Em primeiro lugar, é preciso ressaltar que o quadro de transformações na
América Latina não surgiu de maneira espontânea. No fim dos anos 1990 e começo
da década de 2000, em vários países, houve protestos e mobilizações contra a
herança nefasta do neoliberalismo (desemprego estrutural, cortes de direitos
trabalhistas e previdenciários, agravamento da pobreza, da miséria e das
desigualdades sociais). Na Argentina, Venezuela, México, Equador e Bolívia, os
movimentos sociais conseguiram se rearticular para enfrentar o neoliberalismo.
Neste contexto, entidades reivindicantes incluíram nas agendas das lutas
sociais o direito à comunicação e a necessidade crucial da democratização da
informação e da produção cultural. A maior novidade foi a posterior adesão dos
governos à causa da democratização da comunicação, que passa, em primeiríssimo
lugar, por mudanças nos marcos regulatórios e nas leis herdadas das ditaduras
militares, que favoreciam os grupos empresariais. A defesa do direito social e
humano à comunicação constitui um relevante avanço de perspectiva. A
participação protagônica do poder público nas questões comunicacionais é uma
demanda insuperável e indispensável, porque o neoliberalismo tentou nos
convencer de que o mercado seria capaz de distribuir conhecimentos de maneira
equânime. Uma mentira, já que o mercado é elitista e está estratificado, o que
marginaliza os setores populares de maneira dramática. Então, numa região
marcada por desequilíbrios e profundas desigualdades, o Estado precisa intervir
para garantir a soberania nacional – o que, na atualidade, tem muito que ver
com o acesso e o usufruto social das tecnologias. Nos últimos dez, doze anos, a
comunicação ingressou nas agendas públicas como um dos temas prioritários. E
dessa atitude dos governos progressistas resultaram novas legislações de
caráter antimonopólico. Por exemplo, a chamada Lei de Meios na Argentina, a Lei
de Radiodifusão Comunitária, no Uruguai, e a Lei de Comunicação Popular, na
Venezuela, entre várias outras iniciativas meritórias, são legislações
avançadas e inclusivas, que desfazem privilégios e discriminações acumulados em
décadas de omissão dos poderes públicos. No Uruguai, a lei permite que a
radiodifusão comunitária seja amplamente legalizada e descentralizada. A
comunicação alternativa, comunitária e popular na Venezuela tem agora condições
e garantias para se desenvolver, inclusive com fomento estatal e facilidades de
regulamentação. Por sua vez, a lei argentina rompe com a cadeia de submissão do
campo da comunicação aos interesses privados – interesses, por definição,
particulares e, em grande parte, excludentes. A vigência da Lei de Meios é um
fato espetacular não somente para a sociedade argentina, como também para a
América Latina, porque é um paradigma a seguir por seu valor como instrumento
antimonopólico e de fomento ao pluralismo e à diversidade. Ao coibir a
concentração das atividades comunicacionais nas mãos de poucos grupos, estimula
um fluxo informativo com opiniões e perspectivas diversas, além de ter
dispositivos de incentivo estatal à produção audiovisual independente e à
comunicação comunitária sem fins lucrativos. Por fim, é importante acentuar que
a democratização dos sistemas de comunicação depende de uma divisão equitativa
entre os três setores envolvidos: o estatal/público, o privado lucrativo e o
social não lucrativo. Depende também de vontade política, compromisso
institucional e respaldo popular, pois não adianta ter leis antimonopólicas se
o poder público não se empenha para fazer cumpri-las.
Neste quadro, o descompasso
entre o Brasil e os seus vizinhos fica ainda mais evidente...
D.M. –
Historicamente, tem faltado vontade política à Presidência da República e a uma
parte ponderável do Congresso Nacional para assumir a causa urgente da
democratização da comunicação. É uma lástima que, nesse campo, o Brasil esteja
na vanguarda do atraso na América Latina. Basta olhar a maioria dos países
vizinhos para verificarmos como o nosso país ficou para trás, nos últimos anos,
em termos de providências governamentais em prol da diversidade informativa e
cultural. Espero que a presidenta Dilma rompa com a inércia de seus
antecessores e demonstre vontade política e coragem para promover mudanças significativas
no atual sistema de comunicação, a partir de consultas aos setores da sociedade
civil envolvidos na questão.
Em outubro, a Sociedade
Interamericana de Imprensa (SIP) – entidade que, na prática, funciona como
sindicato dos donos dos grandes conglomerados de comunicação – se reuniu no
Brasil e manifestou sua preocupação com essas mudanças que têm ocorrido na
América Latina, em defesa de uma suposta “liberdade de expressão”. Esse
conceito, que é uma bandeira histórica dos setores progressistas, está
desgastado?
D.M. –
É uma petulância – embora haja quem prefira o substantivo cinismo – a SIP falar
em “liberdade de expressão”. A maioria dos grandes grupos midiáticos adota
critérios e controles editoriais que frequentemente excluem o contraditório, ou
seja, as posturas críticas e as visões alternativas. Então, com que autoridade
a SIP, que os representa, vem falar em “liberdade de expressão”? É uma
expressão que não reconheço existir no léxico das corporações do setor. A
verdadeira liberdade de expressão está ameaçada, isso sim, por monopólios que
tentam neutralizar ou depreciar as vozes dissidentes. Os monopólios mantêm uma
busca incessante de privilégios mercantis que, quase sempre, se sobrepõem aos
interesses coletivos, tudo isso em prol da liberdade de empresa. Além disso,
seus editoriais e noticiários tendenciosos atacam os governos progressistas que
qualificam a diversidade informativa e cultural como item fundamental para a
democratização da vida social. As campanhas opositoras da chamada grande mídia
contra presidentes progressistas são articuladas e insidiosas. Você percebe que
as mesmas matérias hostis e facciosas são republicadas, em vários países, pelos
principais jornais parceiros, todos eles batendo na tecla de que a liberdade de
expressão está em risco. Trata-se de argumentos falaciosos, que distorcem tudo
aquilo que envolve a regulação democrática da mídia e ocultam da opinião
pública as pretensões políticas e econômicas dos grupos monopólicos. Eles
reagem violentamente quando seus interesses e conveniências são afetados. Não
admitem ceder os privilégios conquistados, na maior parte das vezes, durante as
ditaduras militares. As campanhas são mais violentas nos quatro países onde os
governos se opõem com firmeza à dominação histórica da mídia: Argentina,
Venezuela, Bolívia e Equador. Este é um eixo de governos comprometidos – de
maneiras diferentes e de acordo com os contextos de cada um em particular – com
a ideia de que a comunicação é um direito humano que tem que ser respeitado.
E qual sua avaliação sobre
esta reunião da SIP?
D.M. –
A pior possível. A recente festa do patronato da mídia em São Paulo
simplesmente repetiu, monótona e melancolicamente, a catilinária em favor da
liberdade de empresa, das ambições mercantis e das pretensões monopólicas. A
única coisa positiva foi a ausência da presidenta Dilma Rousseff, que frustrou
e irritou os chefes dos grupos midiáticos. A meu ver, a decisão de ignorar a
SIP foi um ponto alto nos dois primeiros anos de governo de Dilma.
Seus trabalhos mais recentes
analisam também o ativismo na internet. A rede mundial de computadores é uma
nova arena de luta para a construção de consensos?
D.M. –
Sem dúvida. Em sua vertiginosa expansão, a internet constitui mais uma arena de
embates pela hegemonia cultural e política, da qual já não podemos abrir mão.
No ecossistema virtual, descentralizado e interativo, desenvolvem-se múltiplas
práticas comunicacionais e jornalísticas viabilizadas pelo desenvolvimento de
tecnologias digitais, à margem dos mecanismos de controle e seleção da mídia
tradicional. As informações são produzidas e disponibilizadas sem relação de
dependência a centros fixos de emissão e enunciação. O aproveitamento da rede
mundial de computadores para a difusão e a circulação social de conteúdos
contra-hegemônicos – isto é, de contestação às formas de dominação impostas
pelas classes e instituições dominantes – constitui hoje pressuposto para ações
conjugadas e complementares de defesa dos direitos da cidadania, da justiça
social e da liberdade de expressão.
De que modo se dá a
apropriação dessas tecnologias para a disputa contra-hegemônica?
D.M. –
A comunicação virtual proporciona uma ampliação significativa dos espaços de
difusão (portais, sites, blogs, revistas eletrônicas) e de compartilhamento
(redes sociais, listas e fóruns de discussão), até então separados pela
geografia e por dificuldades técnicas e financeiras. A meta precípua é abrir
espaços de divulgação, participação e intercâmbio que reforcem expectativas
para a formação e a expansão de coalizões contra hegemônicas, baseadas em
afinidades eletivas e objetivos convergentes. Incluem-se aí projetos,
experiências e meios ligados a movimentos sociais, populares e comunitários,
organizações políticas e grupos militantes compromissados com o enfrentamento
do sistema dominante e a construção de uma hegemonia voltada à emancipação
social.
É um espaço que,
potencialmente, viabiliza a mídia alternativa, historicamente engolida pelos
custos operacionais dos veículos tradicionais? Que permite a articulação de
movimentos contra-hegemônicos nacionais e internacionais?
D.M. –
Observa-se significativa expansão de meios alternativos que utilizam a internet
e tecnologias digitais como ferramentas para uma comunicação autônoma e
diversificada. A instantaneidade, a transmissão descentralizada, a abrangência
global, a rapidez e o barateamento de custos tornam-se vantagens ponderáveis
para o desenvolvimento de um modo de produção jornalístico que se assenta em
rotinas de criação virtual e práticas cooperativas sem correspondência nas
engrenagens de industrialização da notícia. Respondo à segunda parte da
pergunta, sim, entendo que internet facilita a coordenação e a articulação dos
pontos da rede envolvidos em causas comuns, possibilitando uma maior circulação
de informações, ideias e interpretações sobre a realidade social e rompendo, em
boa medida, o monopólio informativo instituído pela mídia hegemônica. Tudo
isso, geralmente, em regime colaborativo, baseado no princípio inclusivo do
copyleft (reprodução livre das informações, desde que citada a fonte original),
sem fins lucrativos, portanto na contramão da obsessão mercantil dos grupos
midiáticos.
E quais são os reais limites
da internet?
D.M. –
Sem deixar de reconhecer os usos sociais benéficos das tecnologias e o seu
potencial para diversificar as práticas comunicacionais, permitindo o
alargamento da liberdade de expressão, devemos ressalvar que essas mesmas
tecnologias não têm o poder de dissolver graves desigualdades e desequilíbrios
socioeconômicos que impedem a ponderáveis contingentes populacionais o acesso e
o usufruto de conhecimentos, informações e entretenimentos na órbita da rede. A
brecha digital ainda é enorme, sobretudo nas áreas periféricas. Por outro lado,
há necessidade de ampliar a penetração social das mídias alternativas e
comunitárias que se expandem na internet, ainda aquém do potencial que todos
desejamos. Para isso, penso ser necessário um conjunto de providências
articuladas, tais como políticas consequentes de comunicação eletrônica,
criatividade, adequação de formatos e linguagens a públicos mais abrangentes,
melhor aproveitamento de ferramentas de divulgação e interação, atuação
incisiva e articulada nas redes sociais, o desenvolvimento sistemático de
coberturas e campanhas compartilhadas.
Você criticou, anteriormente,
as limitações das políticas públicas para o setor de comunicação. No caso do
acesso à internet, ainda restrito, vale a mesma lógica?
D.M. –
A democratização dos acessos depende, entre outros quesitos, de modelos de
desenvolvimento socioeconômico inclusivos; de políticas que intensifiquem os
usos sociais, culturais, educativos e políticos das tecnologias; do
desenvolvimento de infraestruturas de rede em banda larga; de investimentos
públicos consequentes; do barateamento de custos teleinformáticos; de formação
educacional condizente. Daí a importância de pressões sociais organizadas para
que os poderes públicos se convençam de que é fundamental à descentralização
dos sistemas de comunicação valorizar as plataformas, suportes e meios
alternativos e comunitários que atuam no âmbito digital, através de programas
institucionais de apoio técnico, treinamento e capacitação tecnológica,
fomentos, patrocínios e cotas da publicidade oficial. Os investimentos públicos
são importantes para ajudar a criar condições de sustentabilidade a
experiências que contribuam para a diversidade informativa e cultural.
Najla Passos, para MídiaComDemocracia
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