Por Paulo
Moreira Leite, em seu blog:
No Brasil, país onde a atividade parlamentar tem sido
sufocada por um debate de tom moralista, o filme "Lincoln", de Steven
Spielberg, equivale a uma aula magna sobre o tema.
Debruçado na luta parlamentar do mais importante
presidente dos Estados Unidos para aprovar a emenda constitucional que aboliu a
escravidão, Spielberg não tem receio de mostrar a política como ela é – com
seus ideais e suas ambições, compromissos sociais e visões diversas, mas também
com seu jogo de bastidores, a troca de favores e benefícios que permitiram um
avanço que mudou a história americana e abriu novas perspectivas de
prosperidade mundialmente.
O filme não idealiza um momento épico com frases de
efeito e lições pedantes. Pelo contrário. Ajuda a recordar que os homens travam
seu combate político a partir de condições dadas.
As condições reais da luta política nos EUA daquele
período não tinham nada de um convento de freiras carmelitas. Para quem
acredita que a política americana tem outra “cultura”, com um maior apego “à
ética” e aos “valores morais”, o filme serve como um banho de realidade.
O choque entre as verdades que o filme exibe e as
crenças estabelecidas a respeito da história dos EUA é tão grande que ajuda a
explicar porque Steven Spielberg perdeu o Oscar de Melhor Diretor. Sem exagerar
na sociologia de botequim, meu palpite é que “Lincoln” exibe verdades
inconvenientes demais para receber tamanha consagração.
“Lincoln” se passa num momento histórico preciso,
quando a derrota militar do Sul escravocrata está definida e é preciso negociar
como o país irá sair de uma Guerra Civil que já fez 60.000 mortos. Com um
roteiro bem estruturado, o filme mostra qual é o debate daquele momento.
De um lado, com imenso apoio popular, mas isolado junto
à elite americana e dentro de seu próprio governo, Lincoln está convencido de
que é preciso aproveitar aquela conjuntura favorável como uma oportunidade
única para abolir a escravidão. Em vez de reconstruir os velhos acordos de
sempre, que permitiriam a manutenção do cativeiro, coloca a abolição como
condição para a paz. Já seus adversários querem o contrário. Garantir a paz em
primeiro lugar para, em posição mais confortável, negociar o destino dos
escravos – com resultados previsíveis.
Entre os dois lados do conflito, há um Congresso onde
Lincoln tem uma leve maioria, insuficiente para aprovar uma emenda
constitucional. O enredo do filme consiste na luta de um presidente
politicamente resoluto, socialmente progressista e quase um fanático religioso,
que avança a passos largos pelos escombros de um pacto social inviável, mas
protegido por homens de força, tradição e muito poder.
Spielberg faz justiça aos operadores políticos que se
dedicam a buscar os votos que faltam. Não esconde seu papel decisivo em vários
momentos, inclusive numa situação insólita, minutos antes da votação, quando
uma pequena manobra conservadora pode colocar tudo a perder.
Os operadores se mostram incansáveis no trabalho de
convencer deputados em fim de mandato, que não conseguiram reeleger-se no
último pleito – e, às vésperas de tomar o rumo de casa, podem mudar de lado se
ouvirem bons argumentos, em alguns casos, ou receberem uma boa oferta material,
em outros, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Estas conversas e negociações
ocupam o centro dramático do filme – e terão um peso decisivo no desfecho dos
acontecimentos. Spielberg não foge da discussão, não embeleza nem esconde os
fatos. Mostra como eles se passaram.
Baseado numa obra respeitada pela pesquisa histórica, o
filme exibe o presidente em reunião com seus operadores, discutindo técnicas de
abordagem dos indecisos. Quando um dos presentes comenta que alguns votos vão
sair mais caros, sugerindo que seria recomendável que se fizesse oferta em
dinheiro, o presidente reage em silêncio – o filme deixa a cada um o direito de
imaginar o que ele queria dizer com isso.
Numa das cenas finais, um veterano das campanhas
abolicionistas chega a definir a abolição, explicitamente, como uma das mais
belas e mais corruptas decisões do Congresso americano.
Num país atingido por esforços sucessivos de
criminalização da atividade política, Lincoln é um instrumento útil para se
refletir como uma mudança desse vulto foi operada num dos regimes de democracia
mais ampla daquele período. Antes e depois da abolição, a política
norte-americana conviveu com esquemas variados de corrupção.
A pergunta honesta e difícil que o filme evoca consiste
em saber qual a melhor opção: manter o regime do cativeiro ou jogar as regras
do jogo para fazer o país avançar?
Fica claro que, sem o pacote de empregos, benefícios e
favores distribuídos por seus operadores – e sem uma postura política
irredutível de eliminar o cativeiro – Lincoln teria entrado para a História
como um presidente de ótimas intenções e péssimos resultados.
A luta contra o cativeiro não se resumiu aos bastidores
de Washington nem à guerra de parlamentares republicanos e democráticos.
Incluiu revoltas, fugas em massa e outros atos de insubordinação conduzidos
pelos próprios escravos, que terminaram por colocar o fim do cativeiro na ordem
do dia, como se vê em Django, que se passa na mesma época. Mas a abolição
precisava de uma emenda constitucional e esta mudança só poderia ser feita
pelos métodos usuais da política.
Eu acho importante que Spielberg não tenha querido
embelezar a história, fingindo que ela aconteceu de forma mais edificante.
Ao exibir os fatos em sua verdade e feiura, o filme em
nada diminui a grandeza de uma mudança decisiva para o conjunto da humanidade.
Spielberg mostra que Lincoln estava determinado a aproveitar cada brecha, cada
oportunidade, para empurrar a roda da história. Esta é a lição do filme.
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