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Contestado, uma guerra civil no sertão catarinense

Quando surge o debate sobre qual teria sido o maior levante popular envolvendo posse de terra no século XX no Brasil, nem sempre surge à lembrança a Guerra do Contestado, que se desenrolou nos estados do Paraná e Santa Catarina entre 1912 e 1916. Culminação de um longo período de disputas territoriais entre os dois estados (cuja fronteira era contestada desde 1900, daí o nome do conflito), a guerra contrapôs a população cabocla da região e as forças militares estaduais e federais. Num movimento que unia reivindicações territoriais sobre uma área rica em madeira e erva-mate a uma revolta antifederalista, a população se organizou numa milícia que ficou conhecida como Exército Encantado de São Sebastião – indicativo de uma inspiração messiânica, não muito distante daquela que moveu os rebeldes de Canudos, no século anterior. Disposto a eliminar as insurreições regionais contra a ainda jovem República brasileira, o presidente Hermes da Fonseca acirrou a intervenção militar em 1914, chegando a enviar 8 mil soldados contra os rebeldes (que somaram 10 mil, no auge da mobilização). Os quase quatro anos de batalhas resultaram em cerca de 20 mil mortes e tiveram como conclusão a delimitação oficial da fronteira entre Paraná e Santa Catarina, ratificada em 20 de outubro de 1916.
A Guerra do Contestado é um assunto muito caro ao cineasta Sylvio Back. Natural de Santa Catarina, o diretor cresceu ouvindo as histórias dos combates. O longa-metragem que projetou seu nome internacionalmente, A guerra dos pelados (1970), era uma versão ficcional dos eventos de 1912-1916, filmado em locações autênticas em Santa Catarina. Hoje, consolidado como um dos mais importantes documentaristas da história do nosso cinema, com 34 filmes entre longas, curtas e médias-metragens, Back retorna ao conflito com O Contestado – Restos mortais, que estreou em outubro. O filme é definido pelo autor como um “docudrama”, misturando ficção e levantamento factual. Aborda o ângulo místico da guerra (incluindo depoimentos de médiuns que falam em nome do espírito de testemunhas do conflito) e recupera histórias e memórias que ainda sobrevivem no coração do Sul do Brasil. Com isso, Back espera reavivar a memória nacional sobre o Contestado, um episódio pouco lembrado até mesmo no meio acadêmico. “Foram milhares de mortos em quatro anos de embates, mas aquela tragédia persiste como um ‘acontecimento zumbi’ na formação territorial brasileira”, aponta o cineasta.

Como resumir, para o brasileiro do século XXI, o que foi a Guerra do Contestado?
A Guerra do Contestado é o maior, mais violento e trágico levante popular pela posse e contra a usurpação da terra no século XX no Brasil. Começou em 22 de outubro de 1912, por causa de histórica disputa de fronteiras entre Paraná e Santa Catarina – que remontava ao Império – e acabou numa impensável guerra civil nos sertões catarinenses. Provocou a morte de mais de 20 mil pessoas, entre civis e militares, e, ao mesmo tempo, nela vieram à tona formidável surto de fanatismo religioso, com nítido substrato terrorista, xenofobia, veleidades separatistas, entrada do capitalismo na região, anti-impelialismo e uma forte ânsia de poder entre os revoltosos. Ainda assim, com a repressão de mais de um terço do efetivo do exército brasileiro à época (8 mil homens), combatendo numa área do tamanho do estado de Alagoas, a Guerra do Contestado continua pouco estudada e re-conhecida nas escolas e universidades, quase inteiramente desterrada da historiografia e do inconsciente coletivo nacionais.
Qual a importância do conflito para a história daqueles anos formativos da República brasileira?
Chegamos ao centenário da Guerra do Contestado e, quando penso no conflito, uma sensação de lesa-pátria nunca deixa de me assombrar, não apenas como cidadão catarinense, com vasta vivência no Paraná, mas também como um cineasta cuja obra é seduzida pela ânsia de reverter falácias, distorções e esquecimentos da “história oficial”. Quando a guerra eclodiu, na falta de melhor entendimento e até pela proximidade histórica, logo se alcunhou o Contestado de “Canudos do Sul”.  E há semelhanças, principalmente, na crença da chegada de um messias, no fanatismo dos revoltosos e na feroz repressão militar. Mas seu espectro místico, bélico, geopolítico, sócio-econômico e demográfico extravasa em envergadura, recorrência e reflexos nas décadas seguintes a trágica epopeia de Antônio Conselheiro. O Contestado que persegue uma modernidade a toda prova, justamente, por tratar da irresolvida questão da terra no Brasil, um “perrengue” sócio-econômico que prevalece desde o descobrimento, portanto, há 512 anos!
(...)

Pode detalhar um pouco como foi sua abordagem dos vários temas que permeavam o conflito?
A complexidade da Guerra do Contestado é estonteante, perturbadora. Talvez resida aí a ignorância sobre o conflito, que não se resume a uma luta entre deserdados da terra e as tropas do exército brasileiro armado até os dentes – usaram até canhões Krupp empregados na Primeira Guerra Mundial. Todo processo civilizatório embute barbárie. No Contestado não foi diferente. Seu caótico conteúdo era separatista e incluía a ideia da fundação de uma “monarquia sul-brasileira”, que se estenderia do Uruguai ao Rio de Janeiro. Ainda havia a influência multinacional, com a chegada do capitalismo na região; um componente xenófobo, com a entrada dos imigrantes europeus confrontados a caboclos, negros e índios; e a exploração de empresas estrangeiras aliadas a latifundiários, mercenários e aos detentores do poder político e militar no Paraná e Santa Catarina.
Por Marco Antonio Barbosa

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