Na “era da austeridade”, idosos britânicos são as primeiras vítimas dos cortes de gastos. Sem orçamento, programa de assistência social não supre mais as carência da terceira idade
Dos 2 milhões de idosos britânicos, 800 mil estão "sozinhos,
isolados e em risco"; visitas de assistentes sociais não duram mais de 15
minutos
Símbolo máximo do estado de
bem-estar social do Reino Unido, o sistema de saúde britânico está em crise há
pelo menos 10 anos. Sem perspectiva de aumento orçamentário acima da inflação
para os próximos quatro, e com a população envelhecendo, os resultados da
política de austeridade já estão batendo à porta dos idosos na ilha.
Um grupo de 60 especialistas
ligado à área da saúde pública, entre eles representantes da renomada
Associação Médica Britânica e da ONG AgeUK, enviou uma carta aberta à imprensa
alertando o primeiro-ministro conservador David Cameron para uma bomba-relógio.
Há, segundo os cálculos do grupo, 2 milhões de idosos no país. Destes, 800 mil
estão "sozinhos, isolados e em risco", sem apoio de serviços públicos
ou privados.
No Reino Unido, as autoridades
locais (subprefeituras e prefeituras) têm obrigação legal de oferecer
assistência a pessoas em idade avançada e com diferentes níveis de risco, mas o
sistema tem privilegiado cada vez mais quem está em situações de necessidade
extrema. Em contrapartida, quem antes tinha direito a auxílio em casos
considerados menos graves agora não tem mais.
Elizabeth Feltoe, consultora de
políticas sociais da AgeUK, lembra que o Estado britânico já foi mais
"generoso". "Como as autoridades locais têm menos recursos, os
serviços estão sendo encolhidos, com mais cortes desde o ano passado",
afirmou ao Opera Mundi.
Por exemplo, as visitas de
assistentes sociais às casas dos idosos, que vivem sozinhos, não passa de 15
minutos (leia mais abaixo). O máximo que os cuidadores conseguem fazer é
esquentar comida e ajudá-los a trocar de roupas - gerando frustração tanto dos
profissionais da área como dos idosos, que reclamam por serem
"invisíveis" a quem deveria lhes dar atenção.
Segundo Elizabeth, cada
subprefeitura e prefeitura tem autonomia para decidir o tamanho da fatia do
orçamento dedicada à assistência social e ao cuidado com idosos. No entanto, em
paralelo ao aperto nas contas, a decisão também acaba passando pela vontade
política local. Como resultado, o Reino Unido tem hoje áreas em que o auxílio
aos idosos é considerado satisfatório, enquanto em outros é problemático.
"É uma loteria do código
postal", conta Elizabeth, "em que dois idosos são vizinhos, mas podem
receber assistência em níveis bastante diferentes."
O premiê David Cameron, que
mantém a retórica da "era da austeridade" no Reino Unido, com
previsão de mais cortes pelos próximos três anos, preparou uma nova diretriz
para o setor, que ainda precisa de aprovação no Parlamento. As entidades esperam
que o documento simplifique e torne clara a legislação de acesso à assistência
social no país.
"É preciso que o sistema
seja sustentável", afirma a consultora da AgeUK. "Se toda a
legislação sobre o assunto está separada em diferentes artigos, fica difícil
para as pessoas entenderem a que elas têm direito. Elas precisam de informação
e aconselhamento, porque se não planejarem antes e precisarem de assistência
para ontem, como no caso de um derrame, por exemplo, elas dificilmente vão
conseguir o que precisam."
The Big Society e a terceira idade
Três vizinhos de uma artista
aposentada, que será chamada de Sue nesta reportagem, se desesperaram no ano
passado com a maneira que ela, já idosa e com Alzheimer, foi tratada pelo
governo. O relato ao Opera Mundi foi feito sob condição de anonimato.
O caso ocorreu em Oxford, uma
das cidades mais ricas do Reino Unido. Sue, com cerca de 80 anos, morava
sozinha e sem apoio da família, que a abandonou. Acabou dependendo de seus
vizinhos para sobreviver e de visitas esporádicas do serviço social.
As visitas das assistentes
sociais, segundo relatos dos vizinhos, duravam apenas 10 minutos - o suficiente
apenas para que Sue tomasse seus remédios. Ela já mostrava seus primeiros
sinais de Alzheimer. Esquecia o nome das pessoas e colocava roupas de trás para
frente e já não podia mais fazer suas próprias compras.
Sem o devido apoio do Estado,
que aplica formulários de diagnóstico bastante criticados pela falta de
detalhamento, Sue foi "empurrada" para o conceito-chave do governo
conservador de Cameron: a chamada The Big Society, ou Grande Sociedade, uma
construção da campanha eleitoral que convoca os britânicos a buscar o
voluntariado para tapar os buracos deixados pela política de austeridade.
"O atendimento do governo
não era nada satisfatório. As assistentes sociais, que faziam rodízio,
apareciam sem hora marcada e algumas mal falavam inglês", contou uma das
vizinhas, que riu ao ser perguntada se o conceito de Big Society funcionava.
"O Estado terceiriza uma empresa, que paga salário mínimo para essas
visitas apressadas. O sistema é inflexível e fragmentado. No final das contas,
ninguém assume a responsabilidade quando alguma coisa dá errado e muito
dinheiro é jogado fora."
Depois de dois anos vivendo em
condições precárias, incapaz de cozinhar e dependendo da boa vontade dos
vizinhos, Sue tropeçou e caiu ao sair de casa. Foi levada a um hospital e, em
seguida, a um retiro do governo considerado pelos vizinhos "bastante
impessoal". "Ela foi tratada injustamente, sem qualquer qualidade de
vida", explicou uma das vizinhas. "No hospital e no retiro ela é
ajudada corretamente, mas por que nada foi feito antes, quando ela ainda estava
em casa?"
Os vizinhos fizeram uma
reclamação formal ao governo pelo tratamento dado a Sue. Os serviços não foram
grátis. Quando ela estava em casa, a idosa pagava 70 libras esterlinas por
semana. Quando foi para o hospital, seu tratamento custou mil libras por
semana. E agora, no retiro, ela paga 600 libras por mês, que saem de suas
economias.
"Veja como não faz
sentido. Se o atendimento em casa fosse feito como deveria, ela poderia ter
passado mais tempo em casa e, certamente, não teria ido parar no hospital. O
retiro era inevitável - mas poderia ter sido adiado. E bastante dinheiro
poderia ter sido economizado", desabafou uma das vizinhas. Para ela, a Big
Society de Cameron pode até funcionar. Só com ajuda do governo.
Roberto Almeida
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