Pular para o conteúdo principal

A corrida sobre as terras férteis da África

A matéria é muito oportuna. O Brasil não está imune. Aliás, há uma grande pressão no Congresso para se alterar a Constituição e permitir a compra de terras por estrangeiros. Ficamos todos atentos !!

 
Enviado por luisnassif, qua, 02/11/2011 - 15:00

Por raquel

A febre dos cultivos perturba a África

A corrida internacional para explorar terras férteis no continente africano ameaça o equilíbrio na distribuição da água e estimula protestos de comunidades de camponeses. A reportagem é de Andrea Rizzi e está publicada no jornal espanhol El País, 31-10-2011. A tradução é do Cepat.


A briga pelo acesso ao petróleo, gás e minerais é uma força subterrânea que contribuiu significativamente para plasmar o mundo moderno. No século XXI, torna-se cada vez mais evidente que, para compreender as relações internacionais, a esses fatores terá que se acrescentar outro: o acesso a terras férteis.

A corrida pelo controle de áreas cultiváveis está em pleno desenvolvimento. O forte aumento dos preços dos alimentos ocorrido em 2007-2008 está por trás do fenômeno. Muitos Governos de países dependentes das importações de alimentos se convenceram da necessidade de reduzir sua vulnerabilidade comprando ou arrendando terras em outros países. Em 2011, depois de alguns anos de relativa calmaria, os preços estiveram constantemente acima do pico de 2008, segundo o índice elaborado pela Organização para os Alimentos e a Agricultura da ONU (FAO). A febre dos cultivos segue queimando e, segundo vaticinam os expertos, não há previsão de que vá abrandar a curto e médio prazo.

A África é o principal cenário da corrida. A falta de transparência de muitos acordos e a ausência de registros públicos confiáveis em vários países impede perfilar estatísticas exaustivas em escala global sobre o fenômeno. Mas os dados disponíveis indicam que este é de amplíssimas proporções, com contratos que cobrem extensões de milhares de quilômetros quadrados. Tão somente na Etiópia, Moçambique, Sudão e Libéria, cerca de 43.000 quilômetros quadrados foram vendidos ou arrendados a investidores estrangeiros entre 2004 e 2009, segundo dados oficiais reunidos pelo Banco Mundial. Trata-se de uma superfície equivalente ao território da Suíça. Caso se tiver em conta que são muitos os países que – na África, mas também em outros continentes – vivem experiências similares, a magnitude da questão é evidente.

O aumento da população mundial, a dieta mais rica de milhões de pessoas em países emergentes e a crescente quantidade de cultivos destinados a biocombustíveis explicam a subida do preço dos alimentos e, em grande parte, a consequente procura por terras. Para além de sua dimensão econômico-social, este estímulo tem implicações geopolíticas.

Uma delas é o controle da água. “Estes grandes investimentos se situam em zonas com um acesso estratégico à água”, comenta em conversa por telefone Michael Taylor, analista da International Land Coalition, uma ONG que acompanha de perto o fenômeno. “Por exemplo, vários países das bacias do Nilo e do Níger são grandes receptadores deste fluxo de investimentos. Muitos dos contratos assinados nestes países não regulam claramente a questão do uso da água. A utilização do caudal do Nilo já é motivo de tensão entre o Egito e outros países da bacia. Quando todos estes projetos estiverem em pleno funcionamento, são de se esperar crescentes extrações de água. Há um alto potencial para que se produzam conflitos”. Cerca de 200 milhões de pessoas viviam na bacia do Nilo em 2005, e a ONU estima que serão 330 milhões em 2030.

O Mali, um dos países atravessados pelo rio Níger, vendeu ou arrendou cerca de 2.400 quilômetros quadrados de terra a estrangeiros somente em 2010, segundo dados reunidos pelo Oakland Institute. Mais de 100 milhões de pessoas vivem na bacia do Níger.

Países que sofrem escassez de água – como a Arábia Saudita, Catar ou os Emirados Árabes Unidos – estão entre os maiores protagonistas da corrida pela terra. “Mas também há outros tipos de investidores: países como a China ou a Índia, que têm água para cultivar, mas temem que no futuro seu setor agrícola seja incapaz de abastecer suas grandes populações; e empresas de países ocidentais, que querem terras para cultivar biocombustíveis, ou simplesmente vender mais no mercado internacional”, observa Taylor. Não faltam tampouco investidores que simplesmente buscam refúgio das turbulências do mercado financeiro.

A briga pela água não é a única evidente consequência geoestratégica neste fenômeno. Também tem um potencial desestabilizador na política de Estados nos quais a terra é uma questão vital, o meio de subsistência direta de grandes porcentagens da população.

Madagascar é um caso premonitório do que pode acontecer. Em 2009, o rechaço a um projeto para conceder à empresa sul-coreana Daewoo a exploração de uma área de 13.000 quilômetros quadrados – aproximadamente a metade da Bélgica – foi o catalisador de um profundo mal-estar que explodiu com violentos distúrbios que deixaram dezenas de mortos. O Governo que assumiu o poder após as desordens descartou imediatamente o projeto. A frustração de camponeses ou pastores expropriados ou despojados do direito de acesso às terras já criou tensões em outros países.

Os defensores deste tipo de projeto alegam que os investimentos permitem criar novas infraestruturas, postos de trabalho e uma melhoria da produtividade agrícola. Os detratores alertam que, na maior parte dos casos, alegam a evacuação de comunidades inteiras, que a criação de postos de trabalho é muito inferior ao número de pessoas que perderam seu meio de vida, que a exportação da produção desses terrenos prejudica países com mercados alimentares muito precários. Várias ONGs denunciaram nos últimos anos numerosos desrespeitos aos direitos das comunidades locais.

Para reduzir esses riscos, o Comitê sobre a Segurança Alimentar (CSA) está impulsionando um código voluntário de conduta internacional. O comitê celebrou uma sessão em Roma de 17 a 22 de outubro, mas não conseguiu terminar as negociações. Olivier de Schutter, relator especial da ONU sobre o direito à alimentação, alertou que “está em marcha uma corrida entre os inversores [que querem obter mais terras] e a comunidade internacional, que quer regular este processo para evitar que tenha consequências pavorosas”.

“O clima na negociação é construtivo”, assinala em conversa por telefone Duncan Pruett, consultor da Oxfam que participou da sessão do CSA. “O problema é que mesmo que se chegasse a um acordo nos próximos meses, esse código voluntário não tocaria em todo caso os fatores que impulsionam o fenômeno”.

Esses continuam aí. “Nossas análises sugerem que nos aguarda uma fase de volatilidade do mercado de alimentos”, explica George Rapsomanikis, economista da FAO. “Além disso, vários casos de restrições às exportações – como as da Índia e do Vietnã sobre o arroz em 2008, e a da Rússia sobre cereais em 2010-2011 – parecem ter reforçado o desejo de auto-suficiência. Passamos de uma era de mercado aberto a uma outra, em que cada um quer se proteger”.

Historicamente, atitudes semelhantes acabaram com frequência causando graves atritos nas relações internacionais

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade: Introdução geral do livro "Por uma outra globalização" de Milton Santos

Por Milton Santos Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mun­do físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, q...

Brasil perde um dos seus mais importantes cientistas sociais

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel Faleceu por volta das 21:30 do dia 26 de março de 213, vítima de um acidente de trânsito no Km 92 da Rodovia Bandeirantes, o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, quando regressava da universidade para sua residência em São Paulo. Historiador e antropólogo, John Monteiro foi um pioneiro na construção do campo temático da história indígena no Brasil, não apenas produzindo uma obra analítica densa e relevante, como também criando e estimulando a abertura de espaços institucionais e de interlocução acadêmica sobre o tema. Não seria exagerado dizer que foi em larga medida por conta do seu esforço dedicado que esse campo de estudos foi um dos que mais cresceu no âmbitos das ciências humanas no país desde a publicação do seu já clássico “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo” (1994) até o momento. Tendo tido toda sua formação acadêmica nos Estados Unidos (graduado pelo Col...

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

Por José Sérgio Gabrielli Será que o presidente Bolsonaro resolveu dar uma reviravolta na sua política privatista e voltada para o mercado, intervindo na direção da Petrobras, demitindo seu presidente, muito ligado ao Ministro Guedes e defensor de uma política de mercado para privatização acelerada e preços internacionais instantâneos na companhia? Ninguém sabe, mas que a demissão do Castello Branco não é uma coisa trivial, com certeza não é. A ação de Bolsonaro, na prática, questiona alguns princípios fundamentais da ideologia ultraneoliberal que vinha seguindo, como o respeito à governança das empresas com ações negociadas nas bolsas, a primazia do privado sobre o estatal e o abandono de intervenções governamentais em assuntos diretamente produtivos. Tirar o presidente da Petrobras, por discordar da política de preços, ameaça o programa de privatizações, pois afasta potenciais compradores de refinarias e tem um enorme efeito sobre o comportamento especulativo com as ações da Petrob...