Pular para o conteúdo principal

Roger Bastide Brasileiro

Impressões do Brasil reúne 11 luminosos ensaios de estética do intelectual francês

24 de abril de 2011

Luiz Zanin Oricchio - O Estado de S.Paulo

Roger Bastide (1898-1974) veio ao Brasil em 1938 para lecionar sociologia na então recém-criada Universidade de São Paulo. Aqui chegou para substituir ninguém menos que Claude Lévi-Strauss, futuramente o nome mais forte do estruturalismo. Como seu antecessor, Bastide também mergulhou de cabeça na cultura do País. Trazia na bagagem a formação humanística europeia, sedimentada na velha França e, em boa parte, usou-a para interpretar a cultura nova com a qual se deparava.

Visitou o País de alto a baixo, tentou entendê-lo e escreveu muito sobre ele. Deixou livros fundamentais como Psicanálise do Cafuné e Estudos Afro-Brasileiros. Mas também imprimiu sua marca em artigos para jornais, catálogos de exposição e revistas. Impressões do Brasil (Imprensa Oficial), com organização e prefácio de Fraya Frehse e Samuel Titan Jr., resgata esses escritos há muito fora de circulação sob a forma de um livro luxuoso, com edição caprichada, papel de alta qualidade e muito bem ilustrado. É um prazer para o leitor voltar-se para o texto tão iluminador de Bastide, e sob condições tão atraentes.

Impressões do Brasil se compõe de 11 artigos, de tamanhos variados. Há desde o artigo de jornal, breve (mas brevidade dos jornais de então, que podiam abrigar textos de até uma página sem qualquer sentimento de culpa), até ensaios de maior fôlego, publicados em capítulos, como as novelas de folhetim, com periodicidade semanal. Da coletânea constam quatro artigos originalmente publicados no Estado: Igrejas Barrocas e Cavalinhos de Pau (1944), O Oval e a Linha Reta (1944), Ensaios de Uma Estética Afro-Brasileira (1948-1949) e Estética de São Paulo (1951).

É curioso ver como os artigos, dispostos em ordem cronológica, testemunham o processo de ambientação do intelectual francês no Brasil. O primeiro, Pintura e Mística (1938), trata de uma questão mais geral, expressa pelo título, ou seja, de como a arte, em especial a pintura, aproxima-se da mística pela busca de restauração de uma unicidade perdida (uma representação da Queda, claro). Da mesma forma, no segundo, Presença da África (1940), é sobre um tema da pintura francesa - a presença de personagens oriundos das colônias na representação pictórica de grandes artistas - que ele se debruça.

Mas logo começam a surgir textos que mostram a profunda imersão de Bastide na cultura brasileira. E, no primeiro exemplar dessa espécie, Machado de Assis, Paisagista (1940), Bastide dá prova de leitura absolutamente original do nosso maior escritor. A singularidade de abordagem já vem explícita no título.

Foi preciso uma sensibilidade outra, um olhar estrangeiro, para detectar um erro recorrente na análise de Machado, que o classificava como um mau paisagista, escritor avesso à descrição de ambientes e do entorno físico das suas histórias. O engano tomou forma de anedota na frase famosa "As casas de Machado de Assis não têm jardim". Pelo contrário, como mostra Bastide, a natureza está bem presente à narrativa machadiana, apenas que profundamente integrada à estrutura da trama. Basta pensar em um dos seus romances maiores, Dom Casmurro, necessariamente ambientado na cidade litorânea que dá outro sentido aos "olhos de ressaca" de Capitu e inclui a possibilidade do mar revolto, que carrega Escobar e sela para sempre a dúvida em Bentinho. Hoje essa presença implícita da natureza na obra de Machado é quase um lugar-comum. Mas foi preciso um leitor francês para percebê-la.

Essas sacadas se sucedem, de ensaio em ensaio.

Em O Oval e a Linha Reta, Bastide discute a predileção de Lasar Segall pela linha curva. Como não era um formalista, não se contenta em detectar a persistência da escolha formal, mas a mostra como necessária para determinado tipo de expressão. Havia ideias em jogo e estas pediam determinada forma e não o contrário.

Luminosos também são os ensaios consagrados ao barroco (Igrejas Barrocas e Cavalinhos de Pau, A Volta do Barroco e Variações Sobre a Porta Barroca) e também aquele em que Bastide evoca a sua cidade de adoção (Estética de São Paulo).

Por fim, é no caudaloso Ensaio de Uma Estética Afro-Brasileira que reencontramos Bastide em seu universo preferencial, uma mística que se aproxima da arte, sem que uma se reduza a outra.

Pintura e Mística (1938)

Ensaio sobre a significação da arte, visual em particular, aproximando-a da mística, isto é, da busca do paraíso perdido e da unidade. (Conferência publicada originalmente na Revista do Arquivo Municipal de São Paulo)

Presença da África (1940)

De como as imagens da África, em especial a sua parte setentrional, a Argélia, se encontram presentes na obra de pintores franceses como Delacroix, Ingres e Matisse. (Cent Cinquent Ans de Peinture Française)

Igrejas Barrocas e Cavalinhos de Pau (1944)

Uma aproximação entre a arte barroca e os antigos carrocéis, considerando-os sobrevivências populares da arte erudita dos séculos 17 e 18. (O Estado de S. Paulo, 23 de março de 1944)

O Oval e a Linha Reta

A Propósito de Algumas Pinturas de Segall (1944). Bastide procura mostrar como a predominância da forma oval nas obras de Lasar Segall se deve a suas necessidades expressivas.  (O Estado de S. Paulo, 29 de maio de 1944)

Ensaio de Uma Estética Afro-Brasileira (1948-1949)

O longo ensaio, tenta descobrir estruturas da mentalidade mística, associando a emoção do sagrado à estética. (O Estado de S. Paulo, 4, 10, 22 e 29 de dezembro de 1948 e 4 de janeiro de 1949)

Estética de São Paulo (1951)

Estudo sobre a arquitetura de São Paulo, debruçando-se desde as estradas que dela saem (em particular, a estrada velha de Santos) e a edificação da cidade vertical. (O Estado de S. Paulo, 24 de junho e 27 de julho de 1951)

Variações

Sobre a Porta Barroca (1951). Uma meditação sobre a função da porta como umbral de passagem de um universo ao outro. A porta fala através dos seus signos. (Habitat 2. Publicado depois em Novos Estudos Cebrap, 2006)


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade: Introdução geral do livro "Por uma outra globalização" de Milton Santos

Por Milton Santos Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mun­do físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, q...

Preços de combustíveis: apenas uma pequena peça da destruição setorial

Por José Sérgio Gabrielli Será que o presidente Bolsonaro resolveu dar uma reviravolta na sua política privatista e voltada para o mercado, intervindo na direção da Petrobras, demitindo seu presidente, muito ligado ao Ministro Guedes e defensor de uma política de mercado para privatização acelerada e preços internacionais instantâneos na companhia? Ninguém sabe, mas que a demissão do Castello Branco não é uma coisa trivial, com certeza não é. A ação de Bolsonaro, na prática, questiona alguns princípios fundamentais da ideologia ultraneoliberal que vinha seguindo, como o respeito à governança das empresas com ações negociadas nas bolsas, a primazia do privado sobre o estatal e o abandono de intervenções governamentais em assuntos diretamente produtivos. Tirar o presidente da Petrobras, por discordar da política de preços, ameaça o programa de privatizações, pois afasta potenciais compradores de refinarias e tem um enorme efeito sobre o comportamento especulativo com as ações da Petrob...

Brasil perde um dos seus mais importantes cientistas sociais

Por Ricardo Cavalcanti-Schiel Faleceu por volta das 21:30 do dia 26 de março de 213, vítima de um acidente de trânsito no Km 92 da Rodovia Bandeirantes, o diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Unicamp, Prof. Dr. John Manuel Monteiro, quando regressava da universidade para sua residência em São Paulo. Historiador e antropólogo, John Monteiro foi um pioneiro na construção do campo temático da história indígena no Brasil, não apenas produzindo uma obra analítica densa e relevante, como também criando e estimulando a abertura de espaços institucionais e de interlocução acadêmica sobre o tema. Não seria exagerado dizer que foi em larga medida por conta do seu esforço dedicado que esse campo de estudos foi um dos que mais cresceu no âmbitos das ciências humanas no país desde a publicação do seu já clássico “Negros da Terra: Índios e Bandeirantes nas Origens de São Paulo” (1994) até o momento. Tendo tido toda sua formação acadêmica nos Estados Unidos (graduado pelo Col...