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O Brasil na África

Enviado por luisnassif,
27/04/2011

Por Luiz Carlos Fabbri

Caro Nassif,

Penso que a discussão se tornou um tanto quanto superficial e maniqueista e por isso queria solicitar que você postasse o texto abaixo, que é parte de um estudo sobre as relações Brasil-Africa que preparei. O período anterior ao governo Lula trata das vicissitudes e da complexidade dessas relações desde o Império. Se quiserem poderei enviar posteriormente a parte relativa ao governo Lula, que representa sem dúvida o salto de qualidade de uma política construída com uma visão abrangente.

Eis o texto:

As relações Brasil-África na atualidade

A política africana do Presidente Lula e as perspectivas de evolução
(excertos)

1. Antecedentes

O período republicano até o golpe de 1964

Embora sob o impulso da escravatura e do tráfico negreiro, o Império desenvolvera um expressivo comércio exterior com a África ao longo do século XIX, algumas vezes, guardando uma importante autonomia com respeito às metrópoles européias, sendo marcante a este respeito o caso de Angola.

A expansão colonialista européia na África, após a Conferência de Berlim em 1984/5, trouxe, porém, como efeito indireto, a descontinuidade histórica dessas relações. Com a ocupação colonial o Brasil se viu confrontado ao monopólio que as potências européias estabeleceram sobre suas colônias.

As elites brasileiras acomodaram-se, no entanto, ao desígnio das metrópoles européias, o que, aliás, se coadunava com o seu desprezo pelo passado como nação e pela composição étnica do povo brasileiro. Manter o país alheio ao que sucedia na África convinha às suas aspirações de branqueamento da sociedade brasileira, que emergiam no processo da abolição da escravatura.

Essa visão distorcida permaneceu durante a República, até os anos 60 do século XX. A política externa brasileira foi caudatária de alinhamentos com a Europa e, posteriormente, com os Estados Unidos e a OTAN, enquanto mantinha uma subordinação particular a Portugal com respeito à África. Serve como ilustração o fato de que cerca de 90% do comércio com o continente africano durante este período se concentrava na África do Sul.

O alheamento com respeito à África estava tão assentado que fez o Brasil praticamente ignorar a primeira fase de independências africanas que deu origem a 17 novos países no ano 1960, chamado por isso “Ano da África”. Na época, o governo Kubitschek (1956-1961) esboçava os primeiros passos no sentido de uma visão mais universalista da política externa, porém a África continuava muito distante das preocupações diplomáticas.

A mudança de postura começa a ocorrer somente no curto governo Jânio Quadros (janeiro a agosto de 1961), quando este lança a Política Externa Independente. Pela primeira vez, o país assumia uma posição pragmática, calcada em interesses nacionais e sem considerações de cunho ideológico. A percepção que tinha o governo desses interesses próprios o levava a reafirmar o Brasil como país ocidental, porém reconhecendo, pela sua história e situação periférica, o direito à autodeterminação dos povos coloniais.

Contudo, no caso das colônias portuguesas o discurso oficial ainda padecia de ambigüidade, pois continuava exaltando os laços históricos com Portugal. Isso, por exemplo, levou o Brasil a abster-se na votação da importante Resolução 1.514 das Nações Unidas de dezembro de 1960 sobre a descolonização, que condenava a política colonial portuguesa.

Com a ascensão de João Goulart (setembro de 1961 a abril de 1964), após a renúncia de Jânio em agosto de 1961, a Política Externa Independente foi reafirmada e levada à prática, conduzindo pela primeira vez a uma aproximação, embora ainda incipiente, com o continente africano, num quadro de grande instabilidade. Cabe destacar que a polêmica que se instaurou em torno das posições pragmáticas e universalistas em temas externos, contribuiu para o golpe de 1964.

A ditadura militar: realinhamento e inflexão

A ditadura militar promoveu no governo Castelo Branco (abril de 1964 a março de 1967) um retrocesso na política externa, voltando ao realinhamento com os Estados Unidos, que havia apoiado o golpe militar. O tema da segurança coletiva, caro à geopolítica da Guerra Fria e sua visão de um mundo bipolar, era resgatado pela ditadura e tomava corpo com a proposta de criação de uma Organização do Tratado do Atlântico Sul (OTAS), nunca materializada, porém recolocando em seu bojo o reforço da aliança com o Portugal colonialista e a África do Sul racista, vivendo então o auge do regime do apartheid.

Porém, o elevado crescimento econômico brasileiro de 1968 a 1973 recolocou rapidamente a necessidade da busca do interesse nacional, tendo em vista alcançar objetivos de desenvolvimento e ter acesso a tecnologias estratégicas, frente a resistências dos EUA. Iniciada com Costa e Silva (março de 1967 a agosto de 1969), e prosseguida por Garrastazu Médici (outubro de 1969 a março de 1974), a nova política externa da ditadura aspirava fazer do Brasil uma grande potência, com maior poder nas decisões internacionais, o que implicava também em aproximar-se do Terceiro Mundo.

Embora precedida pelo périplo pela África Ocidental de Mário Gibson Barboza, Ministro de Relações Exteriores de Médici, motivada pela descolonização dos países africanos de expressão portuguesa, a primeira inflexão se produziria realmente com o governo Ernesto Geisel (1974-1979) e a diplomacia do “pragmatismo responsável”. Até então, a autonomia crescente da política externa com respeito aos Estados Unidos não tivera grande impacto com relação à África.

A Revolução dos Cravos de 25 de abril de 1974 em Portugal e a concordância do novo governo de transição com a autodeterminação das colônias portuguesas concediam maior margem de manobra com respeito aos compromissos anteriores da diplomacia brasileira.

Além disso, razões econômicas impeliam o governo brasileiro a mudar seus alinhamentos tradicionais: a crise do petróleo em 1973, com o brutal aumento do preço desta commodity e a deterioração das contas externas brasileiras, obrigavam o país, ainda dependente de importações, a procurar alternativas para o seu aprovisionamento

Havia mesmo certo sentido de urgência para uma nova postura com respeito à África. A política pretensamente conciliatória entre Portugal e suas colônias tinha provocado uma grande desgaste ao Brasil, correndo o risco de inviabilizar, no curto prazo, relações mais estreitas com os países africanos de expressão portuguesa e com o próprio continente. O Brasil chegara mesmo a constar de uma lista elaborada pelos novos países independentes da África, entre os quais alguns importantes produtores de petróleo, como passível de sofrer sanções por seu apoio a Portugal e ao regime racista da África do Sul.

De fato, isso já começava a ocorrer. Ao solicitar o estabelecimento de Representações Especiais, durante o período de transição, previamente às independências das ex-colônias portuguesas, o governo brasileiro obteve uma negativa da FRELIMO, que manifestou oficialmente que o país deveria aguardar a independência de Moçambique. A Representação Especial em Luanda, que havia sido criada, tornava-se assim um laboratório para as decisões do novo governo moçambicano e talvez para as relações com o continente como um todo.

Embora o governo brasileiro já tivesse reconhecido a independência da Guiné Bissau, antes da firma do acordo de transferência de poder com Portugal, o passo que marcou efetivamente a reviravolta da diplomacia africana no Brasil foi o reconhecimento do governo do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), em novembro de 1975, logo após a Independência daquele país. O MPLA era o movimento de esquerda que havia conduzido a luta de libertação nacional contra o colonialismo português e que viria a adotar o marxismo-leninismo como doutrina em 1977. Com este passo, o governo reconhecia a irreversibilidade do processo de descolonização e selava definitivamente o fim da conivência com o colonialismo português.

A política do “pragmatismo responsável” adotada por Geisel era pragmática na busca do interesse nacional, porém responsável porque dependia para execução da correlação de forças no país. Com respeito à África, a situação era, no reduzido círculo de poder da ditadura militar, bastante complexa, refletindo pontos de vista contraditórios[1]. Embora houvesse uma corrente que valorizava a formação étnica do Brasil, exaltando o mito da democracia racial e propondo um maior protagonismo brasileiro na África, outra corrente defendia que as relações com aquele continente teriam que ocorrer sob a coordenação de Portugal, tendo em vista uma suposta peculiaridade integradora de raças e culturas do colonialismo português e a perspectiva da criação de uma comunidade luso-afro-brasileira.

Num outro plano, mais pragmático, havia os que defendiam o potencial dos mercados africanos para a indústria brasileira e a necessidade de uma aliança nas instâncias internacionais em favor do desenvolvimento econômico, o que requeria uma maior aproximação do Brasil com a África. Para esta corrente, o alinhamento com o bloco ocidental afastava o Brasil dos países do Terceiro Mundo, tornando o país um parceiro de segunda categoria, incapaz de superar seu atraso econômico.

Porém, os setores mais conservadores do regime postulavam que os nossos interesses eram indissociáveis dos Estados Unidos e da Europa Ocidental como parte da aliança ocidental contra o comunismo. O subdesenvolvimento brasileiro resultava de um atraso conjuntural e, portanto, qualquer identificação com o Terceiro Mundo e com a África seria falaciosa. Uma variante militarista desta corrente via na África um interesse geoestratégico, porém como plataforma de avanço do comunismo e de apoio a movimentos subversivos no Brasil e na América Latina, o que exigia do Brasil, como país aliado ao campo ocidental, um papel na preservação da segurança no Atlântico Sul, não descartando inclusive a formação de uma comunidade luso-brasileira com este propósito.

A política do pragmatismo impôs-se finalmente em meio a todas essas disputas, mantendo-se na sequência com Figueiredo, o último dos presidentes militares (1979-1985). O novo enfoque possibilitou a abertura de novas embaixadas em países considerados prioritários, enquanto se melhorava a articulação com as jovens nações nos fóruns multilaterais. Além disso, o Brasil passou a importar quantidades crescentes de petróleo de países africanos e, ao mesmo tempo, dispor de novos mercados para sua economia em expansão, exportando alimentos e produtos industriais, especialmente automóveis, e desenvolvendo projetos de infraestrutura.

A redemocratização: neoliberalismo e crise

A aproximação se aprofunda com Sarney (1985-1990), que visita os países africanos de expressão portuguesa e promove o I Encontro dos Chefes de Estado e de Governo dos Países de Língua Portuguesa tem lugar no Brasil em 1989, um primeiro passo na criação da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa. Além disso, o governo brasileiro adotava uma posição clara em favor da paz na África Austral, apoiando a independência da Namíbia e condenando a política racista da África do Sul.

Ainda sob o impulso do governo Sarney, as Nações Unidas aprovaram o acordo que estabeleceu a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), seguindo-se a I Conferência do Atlântico Sul em 1988 no Rio de Janeiro, na qual participaram 19 países africanos.

Após o interregno do governo Collor (março de 1990 a dezembro de 1992), que adere às políticas neoliberais e toma distância com respeito à África, seu sucessor, Itamar Franco (1993/4), retoma a política anterior, com ênfase particular na participação brasileira nos processos de paz em Angola e outros países.

No governo FHC (1995-2002), esta orientação prosseguiu com a firma de acordos comerciais e a participação do exército brasileiro em missões de paz em Angola e Moçambique. Contudo, a retomada das políticas neoliberais conduzia a um maior alinhamento com as potências ocidentais e a uma perda de vigor da independência na política externa. Em seu segundo mandato, porém, produziu-se uma certa inflexão, espelhada na visita de Nelson Mandela ao Brasil e o estreitamento das relações com a nova África do Sul.

Datam também dos anos 1990 a penetração crescente da televisão brasileira e das igrejas evangélicas na África, especialmente nos países de expressão portuguesa, ao mesmo tempo em que proliferam as redes de contrabando, tráfico de drogas, armas e lavagem de dinheiro, em conexão com o crime organizado no Brasil.

Um aprofundamento qualitativo das relações do Brasil com a África só iria ocorrer efetivamente com o novo impulso proporcionado pelo governo Lula (2003-2010) sob o forte assédio da direita, da mídia e das elites brasileiras em geral.

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