Pular para o conteúdo principal

SETE TESES CONTRA O TROTE ESTUDANTIL

Por Paulo Denisar Fraga


1. Embora com possíveis expressões anteriores, é patente que o trote atingiu a sua época de ouro na Idade Média, durante a formação das universidades e da vida nas emergentes cidades européias. De pronto, ele já representou uma prática de discriminação e negação do outro, na qual os estudantes provenientes dos centros urbanos atribuíam, aos que chegavam do meio rural, uma suposta bestialidade originária da qual precisavam ser “curados” por meio do “batismo de fogo” dos trotes. Até hoje apresentado como meio de integração dos estudantes, desde a sua origem a natureza dos trotes não integra. Ela segrega.

2. Todas as sociedades, desde as comunidades nativas, possuem ritos de iniciação que servem para introduzir e preservar, nos novatos, os valores do meio social em que estão ingressando. Por isso a questão não está em haver recepção e introdução dos estudantes, mas em saber de qual recepção se trata nos trotes tradicionais. Como tais, eles não servem para reproduzir os valores humanistas que caracterizam a tradição histórica das universidades. Ao contrário, eles são a sua negação escrachada, manifesta em atos de irracionalismo bufão e tosco. Por isso, em relação aos meios culturais e científicos, os trotes são um rito de passagem às avessas.

3. Desde Sócrates, as máximas “só sei que nada sei” e “conhece-te a ti mesmo” ensinam que a sabedoria está no reconhecimento dos limites do próprio saber, e que a situação do “saber menos” ou do “não saber” deve ser tratada positivamente, no sentido de que o conhecimento é um processo sempre contínuo e inconcluso. Contudo, o trote menospreza os novatos justamente pela suposição de seu saber ser menor enquanto novatos. No trote o limite do saber não é base para a abertura do processo de formação, mas para o deboche e a execração. Mandonistas e infensos ao senso crítico, os trotes são a negação da essência da relação pedagógica.

4. A alegada aceitação do trote por muitos estudantes não escapa ao enigma da servidão voluntária, que pode ser destrinchado pela dialética hegeliana do senhor e do escravo, na qual este internaliza os valores do senhor e passa a pensar que o que é ideal para o senhor também é ideal para ele, escravo. E quando percebe que o senhor o oprime, teme lutar pela liberdade porque imagina se expor a retaliações do senhor. Essa é uma das razões pelas quais dezenas de alunos declinam de dizer não para quatro ou cinco que lhes aplicam o trote. Esse medo prova que o trote se sustenta na ameaça e na perspectiva da violência.

5. A ideia que considera o trote apenas como uma brincadeira que, como tal, não contém maior problema, ignora que o brincar está ligado ao processo de humanização, enquanto o trote não passa de um evento de barbarização das relações humanas. Uma criança protesta quando dela é apartado um brinquedo, revelando os valores simbólicos do homem. Mas no trote o homem deixa de ser sujeito para ser o próprio objeto. E seu único valor é o de escárnio. Donde não admira que a nobreza do “homo ludens”seja rebaixada à miséria de “animais de rebanho”. O trote perverte o sentido da alegria em diversão por subjugar o outro.

6. Histórica e socialmente, os trotes se assentam na divisão hierárquica entre trabalho intelectual e manual e numa visão egoísta da educação formal como meio privado de ascensão social. As aberrações desfiladas pelas ruas espelham indiretamente a perspectiva elitista de superioridade dos futuros “doutos” frente ao cidadão que não teve a mesma oportunidade. E a sobrevalorização fragmentária de cursos nesses rituais solapa a concepção universal e interdisciplinar da universidade. Sua finalidade é entrevista pela viseira de um particularismo corrosivo e antissocial. Numa palavra, os trotes são a expressão e o reforço da estratificação social.

7. Nas recepções alternativas, não só o termo “bicho”, mas também o termo “trote” precisa ser superado. “Bicho” porque denota a mesma necessidade psicológica já conhecida na justificação das investidas militares, que necessita primeiro desumanizar o outro para depois submetê-lo à violência e até à destruição. E “biXo”, com “X”, só assinala aquele que está marcado. Já “trote” por se achar impregnado de um sentido intrinsecamente negativo, marcado pela ideia de enganar ou manietar alguém. Nos seus longos séculos pelos campi, os trotes não são só violência física, mas também simbólica e, talvez, tenham sido a primeira forma de bullying na educação.

*Filósofo e professor do Instituto de Ciências Humanas e Letras da Universidade Federal de Alfenas (MG).

Comentários

  1. Muito bom o texto!!! vou passar a todos meus alunos, pois sempre vi situações extremas, tipo os alunos comerem fezes do outro. execrável, horrendo, nem sei como classificar atos desses tipos quando entramos na universidade.

    ResponderExcluir

Postar um comentário

Postagens mais visitadas deste blog

Por que a luta por liberdade acadêmica é a luta pela democracia

Por Judith Butler Muitos acadêmicos se encontram sujeitos à censura, à prisão e ao exílio. Perderam seus cargos e se preocupam se algum dia poderão dar continuidade às suas pesquisas e aulas. Foram privados de seus cargos por causa de suas posições políticas, ou às vezes, por pontos de vista que supõem que tenham ou que lhes é atribuído, mas que não eles não têm. Perderam também a carreira. Pode-se perder um cargo acadêmico por várias razões, mas aqueles que são forçados a deixar seu país e seu cargo de trabalho perdem também sua comunidade de pertencimento. Uma carreira profissional representa um histórico acumulado de uma vida de pesquisa, com um propósito e um compromisso. Uma pessoa pensa e estuda de determinada maneira, se dedica a uma linha de pesquisa e a uma comunidade de interlocutores e colaboradores. Um cargo em um departamento de uma universidade possibilita a busca por uma vocação; oferece o suporte essencial para escrever, ensinar e pesquisar; paga o salário que lib

54 museus virtuais para você visitar

American Museum of Natural History ; My studios ; Museu Virtual Gentileza ;

O mundo como fábula, como perversidade e como possibilidade: Introdução geral do livro "Por uma outra globalização" de Milton Santos

Por Milton Santos Vivemos num mundo confuso e confusamente percebido. Haveria nisto um paradoxo pedindo uma explicação? De um lado, é abusivamente mencionado o extraordinário progresso das ciências e das técnicas, das quais um dos frutos são os novos materiais artificiais que autorizam a precisão e a intencionalidade. De outro lado, há, também, referência obrigatória à aceleração contemporânea e todas as vertigens que cria, a começar pela própria velocidade. Todos esses, porém, são dados de um mun­do físico fabricado pelo homem, cuja utilização, aliás, permite que o mundo se torne esse mundo confuso e confusamente percebido. Explicações mecanicistas são, todavia, insuficientes. É a maneira como, sobre essa base material, se produz a história humana que é a verdadeira responsável pela criação da torre de babel em que vive a nossa era globalizada. Quando tudo permite imaginar que se tornou possível a criação de um mundo veraz, o que é imposto aos espíritos é um mundo de fabulações, q