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O imediatismo e um projeto de longa duração

No brilhante trabalho de Alfredo Bosi, “A dialética da Colonização”, especialmente no capítulo 9, no qual analisa a importância de “idéias de longa duração”, o autor trabalha com a hipótese de que, para “acelerar o passo de uma formação social retardada” é necessário um conjunto de valores, que integram uma ideologia e que está no “fundo” dos processos de desenvolvimento.

Essa hipótese de Bosi está baseada nos trabalhos do economista e historiador Alexander Gerschenkron[1] sobre o atraso econômico em escala mundial, elaborada a partir de detalhada análise do caso francês, alemão e russo. Sua tese é que o desenvolvimento técnico e econômico das nações européias não foi um subproduto automático da Revolução Industrial, pois dependeu também de fatores ideológicos e, em no sentido amplo, culturais. É como se fosse necessário a existência de um “caldo de cultura e um conjunto de valores” para que os avanços possam acontecer e até mesmo, legitimar um projeto nacional de desenvolvimento (industrialização) em que o Estado seja um ator importante. Apenas como registro, o que conhecemos hoje como Estado de Bem Estar Social, tem forte inspiração positivistas e remete a filosofia utópica de Saint-Simon[2] (que Auguste Comte foi seu discípulo), que via a sociedade do futuro como uma espécie de nação-estado corporativa na qual os líderes da indústria assumiriam funções políticas de relevo, a economia planejada regularia o desenvolvimento da nação como um todo. A recompensa do mérito iria para os fortes; a assistência benévola, para os fracos. No entanto, para estabelecer seu sistema era fundamental estabelecer uma economia planejada que regulasse o desenvolvimento da nação como um todo, estimulando a produção e corrigindo os desequilíbrios do mercado.

Foi na Alemanha, que o economista Friedrich List[3] aplicou o discurso empresarial de Saint-Simon em favor de um poder público centralizador, no qual Bismarck foi o paladino, com o estabelecimento do protecionismo oficial à indústria, foi ai que se adotou pela primeira vez o termo “Estado de bem-estar” (Wohlfahrstaat).

O trabalho de BOSI chama a atenção para a existência de fatores dessa natureza que de desenrolaram no Sul do Brasil, edificados em torno dos ideários de Augusto Comte, através de um grupo de pessoas do circulo positivista gaúcho, do qual Getúlio Vargas era um de seus membros (seu irmão, Protásio Vargas juntamente com o capitão Antônio Prestes, pai de Luiz Carlos Prestes foram um dos fundadores do Centro Positivista de Porto Alegre em 1899) e que a partir de 1930 exerceram grande influência no plano nacional e no processo de consolidação e modernização do Estado nacional. A influência desse grupo pode ter sido maior do que a historiografia reservou para eles. No plano de fundo, está a idéia de progresso.

Na mesma direção de Gerschenkron, o trabalho de BOSI chama a atenção justamente para esses “fatores culturais” que faziam parte da mentalidade dos positivistas no Rio Grande do Sul até 1930, em que os ideários da tradição Saint-Simon/Comte motivaram toda uma geração de “capitães da indústria”, como Miguel Lemos[4], Raimundo Teixeira Mendes (Rio de Janeiro), Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros, entre outros (Rio Grande do Sul). O traço comum entre eles estava na coerência que seguiam os princípios dos ideais positivistas: a luta contra a escravidão, que o próprio Comte a definia como uma “anomalia monstruosa” que deveria ser extirpada, a defesa do regime republicano, a luta contra a monarquia, trabalho livre e a ação intervencionista do poder público.

A coerência era tal, que em 1883 o Apostolado Positivista do Rio de Janeiro rompeu as relações com a direção francesa do movimento. O motivo da cisão deveu-se a atitude conivente de Pierre Laffitte, líder mundial do movimento que fora nomeado pelo próprio Auguste Comte como seu sucessor, com um correligionário brasileiro, fazendeiro do vale do Paraíba e dono de escravos. Acusado de transgredir o princípio positivista que condenava a instituição do cativeiro, foi advertido e excluído do movimento, porém a liderança mundial se recusou a adverti-lo. Essa mesma coerência aos princípios pode ser percebida no embate interno do Partido Republicano ainda em torno do problema da escravatura. De um lado aqueles que fizeram a convenção de Itu[5] e criaram o partido em São Paulo (cafeicultores e bacharéis ligado ao sistema agroexportador), que defendiam o uso da mão-de-obra escrava até ser substituída por imigrantes europeus, além de pleitearem ressarcimento pelos danos que uma alforria geral “antecipada” poderia provocar aos seus negócios. Por outro lado, os republicanos do Rio de Janeiro, sejam os integrantes do Apostolado Positivistas e simpatizantes como Quintino Bocayuva, Benjamin Constant, Silva Jardim, Lopes Trovão, Raul Pompéia, em geral profissionais liberais e homens de doutrina, segundo BOSI, viam as posições dos Republicanos de São Paulo como evasivas sobre um problema caro para todos eles, a manutenção dos cativeiros. As diferenças entre os dois grupos também foi percebida por Raymundo Faoro ao identificar matizes evolucionistas nos discursos dos médicos republicanos, como o de Miranda Azevedo, cuja crença na livre concorrência levaria à seleção dos mais aptos e, portanto, ao melhor resultado.

A favor da “industriosa democracia paulista”, Silvio Romero, radicado no Rio de Janeiro, era abolicionista a sua maneira, achou precipitada a ação do Estado que promulgou a Lei Áurea, entendendo que a questão deveria ser encaminhada pelas “forças em conflito”, pois resultaria “naturalmente” na melhor solução para o organismo social. Do lado oposto estavam os Republicanos do Rio Grande do Sul (Partido Republicano Rio-Grandense - PRR), alvos de Romero, e os positivistas do Rio de Janeiro, que defendiam a ação do Estado seja para orientar e até mesmo para retificar o curso das ações humanas. Rejeitavam a proposta de ressarcir os senhores cujos escravos fossem alforriados por força da Lei, pois significaria admitir o direito de propriedade de um homem sobre o outro.

As posições políticas, tanto dos membros do Apostolado Positivista, quanto dos republicanos gaúchos surpreendem pelas suas propostas avançadas, até mesmo para nossos dias, quanto a coesão interna de seus princípios. A esse conjunto de princípios e propostas e, sobretudo, a coerência de suas práticas políticas, levaram Alfredo Bosi a identificá-los como um “enxerto político de longa duração”, uma ideologia de razoável consistência que guiou a mente de mais de uma geração de homens de Estado. A fonte estava no credo político de Augusto Comte, o que podemos chamar aqui de positivismo social.

O fato revelador foi, ao contrário do que a historiografia[6] assegurava, que a influência positivista não cessou quando os jovens oficiais – chamados de radicais da primeira república – foram excluídos do poder a partir de 1894 pelas presidências paulistas do velho liberalismo, mas se manteve difusa no exército republicano (tenentes) e esteve presente durante os longos anos que o Partido Republicano Rio-Grandense, os conhecidos castilhistas, esteve no poder. Esses dois grupos formaram a base da aliança liberal vitoriosa em 1930, que deslocou a velha elite cafeeira e escravocrata do poder. Com isso, as idéias consagradas na Carta de 14 de Julho de 1891, a Constituição do Rio Grande do Sul, redigida por Julio de Castilho, que voltam com força no governo federal a partir de 1930. No livro “A história do positivismo no Brasil” de Ivan Lins, o autor estuda a biografia da militância política e dos ideais econômicos de lideres progressistas, bem como de engenheiros e militares, de formação positivista, em várias regiões do País, e identificou um traço comum entre eles caracterizado pela conjugação de saber e intervenção nas políticas públicas, uma espécie de cultura tecnopolítica, nas palavras de BOSI.

No campo da educação o Rio Grande do Sul foi o Estado da Federação que dedicou maior atenção à educação primária e ao ensino profissionalizante. A título de comparação, nos governos da República Velha, não havia nenhuma lei que estabelecesse orçamento destinado à educação, algo que o Rio Grande do Sul já fazia desde o período de Julio de Castilhos. Foi com Getúlio Vargas, com a Constituição de 1934, a primeira vez que se estabeleceu um percentual do orçamento público federal, específico para a educação. No campo dos direitos trabalhistas, muito pouco se fez sobre as propostas getulistas.

No campo dos serviços públicos, os republicanos gaúchos anteciparam o embate levado a cabo em torno da aplicação do Código de Águas de 1934. Já em 1913, o então governador, Borges de Medeiros, afirmava a necessidade de municipalizar todos os serviços que a iniciativa particular não possa explorar por tratar-se de mediante monopólio, é o que denominados hoje de monopólios naturais (como o suprimento de água, os serviços de esgoto, a iluminação pública, o fornecimento de energia elétrica). Cabe ao Estado, segundo ele, compete ao Estado exercer a ação reguladora do “livre jogo das forças de mercado” na medida do interesse público.

Já em seu governo promoveu a encampação do Porto do Rio Grande e da Ferrovia Porto Alegre – Uruguaiana, e a exploração das minas de carvão de Gravataí, em 1919, diretamente pelo Estado. Nesse mesmo ano, Getúlio Vargas, em discurso na Assembléia gaucha, afirmava “nos países novos como o nosso, onde a iniciativa é escassa e os capitais ainda não tomaram o incremento preciso, a intervenção do governo em tais serviços é uma necessidade real” BOSI (1992:290).

Esta afirmação está coerente com o pensamento de Celso Furtado, ainda no início de sua formação em 1948 quando chegou à França para fazer seu doutoramento, observou que o país devastado pela guerra, conseguiu mobilizar toda a sociedade para discutir os interesses comuns. O economista recordou que os franceses afirmavam que o planejamento era necessário para resolver os problemas criados pela devastação da guerra. As livres forças do mercado por si só não poderiam resolver tais problemas estruturais. O Brasil vivia uma situação muito semelhante, principalmente em algumas regiões como o Nordeste, tinha-se uma nação a construir, por isso não podia prescindir do planejamento. O cuidado que se deve ter, recomenda Furtado, é não tomar o planejamento como uma camisa-de-força, e que venha sufocar a criatividade humana. Furtado acima de tudo era um homem das luzes, um iluminista, que acreditava na ciência e no progresso técnico e na liberdade.

[1] Alexander Gerschenkron nasceu em Odessa (Rússia), em 1904. Na década de 1920 seu pai imigrou para Viena. Na Áustria, Gerschenkron ingressou na Escola Nacional de Economia da Universidade de Viena, onde obteve o título de bacharel defendendo uma tese que tratava do futuro da democracia marxista naquele país. No Brasil, seu livro “O atraso econômico em perspectiva histórica”, editado em 1962, tornou-se leitura obrigatória nas disciplinas de história comparada e de desenvolvimento econômico, num período de intensos debates entre as formulações de inspiração neoclássica, Keynesianas e as teses cepalinas de Celso Furtado e Raúl Prebisch.
[2] Claude-Henri de Rouvroy, Conde de Saint-Simon, (1760-1825), filósofo e economista francês é considerado um dos fundadores do socialismo moderno e teórico do socialismo utópico.
[3] Georg Friedrich List (1789 - 1846), economista, um dos fundadores da Escola Histórica Alemã, partidário do protecionismo e da intervenção do Estado para desenvolver a indústria, única forma de superar a pobreza.
[4] Miguel Lemos (1854-1917), filho de um oficial de marinha, nasceu em Niterói, Rio de Janeiro. Aderiu ao positivismo quando estudou na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. É considerado o introdutor do positivismo no Brasil e um dos fundadores da Sociedade Positivista Brasileira de 1876. Em viagem à Europa adere à Religião da Humanidade, criada por Augusto Comte e em 1881 funda Igreja Positivista do Brasil, com sede no Rio de Janeiro. Conhecida como Templo da Humanidade, foi o primeiro edifício construído, no mundo, para difundir a Religião da Humanidade. Publicou com Teixeira Mendes "O Apostolado Positivista no Brasil". De sua autoria encontram-se "Pequenos Ensaios Positivistas", "Luís de Camões", "A Questão de Limites entre o Brasil e a Argentina", "Ortografia Positivista" e entre outras. Em 1903, já doente, passou a chefia do Apostolado ao amigo Raimundo Teixeira Mendes. Faleceu afastado da militância positivista, aos 63 anos, na cidade de Petrópolis.
[5] Primeira convenção republicana do Brasil, realizada em 18 de abril de 1873, em Itu, São Paulo, na casa do então deputado Prudente de Morais, com representantes republicanos conservadores e liberais. Participaram 133 convencionais, destes 78 eram cafeicultores.
[6] Que o fim do ciclo da atuação positivista ocorreu nos primeiros anos do século XX.

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