Por J. Carlos de Assis
Um criador que não se
revela mas que deixa muitas pistas.
O caráter emocional do
debate recente entre criacionistas e evolucionistas decorre de dois fatores
principais: primeiro, a associação do criacionismo a religiões, com a
justificada associação de religiões ao obscurantismo, à intolerância e à
perseguição de infiéis ao longo da história; segundo, à tentativa, sobretudo
nos Estados Unidos, de introduzir o ensino do criacionismo bíblico
judaico-cristão nas escolas públicas. Diante desse quadro, surgiu nos países
anglo-saxões, em contrapartida ao evolucionismo bíblico militante, um ateísmo
também militante de grande agressividade, liderado sobretudo por Richard
Dawkins, representado mais recentemente por seu livro “Deus, um delírio” em
defesa do evolucionismo radical.
Para que nos entendamos
quanto ao sentido das palavras, chamo de criacionismo a teoria que postula um
Criador intencional do Universo e, naturalmente, da vida; não tem
necessariamente caráter religioso. E de evolucionista a teoria que postula o
surgimento do Universo e da vida a partir de eventos físico-químicos naturais
auto-organizados ou organizados pelo acaso. Essas duas hipóteses – porque,
afinal, não passam de hipóteses – não são excludentes. Espinosa, que nisso
inspirou Einstein, postulava um deus natural que criou e estabeleceu as regras
de funcionamento do Universo mas que não interfere nele. Isso pode ser uma
síntese criacionista-evolucionista apoiada no determinismo filosófico.
A grande novidade
científica coetânea com Einstein foi a Mecânica Quântica. Embora tendo ajudado
a criá-la, ele nunca aceitou inteiramente suas consequências e aporias. A
natureza mais profunda dessa teoria requer uma imagem simultaneamente
determinista e probabilística da realidade material. Einstein reagiu a isso
dizendo a Bohr, um dos gigantes quânticos: O Velho não joga dados! Ou seja, um
deus determinista, natural, indiferente ao destino humano, era incompatível com
uma realidade probabilística, que parecia implausível mesmo sem um deus. Não é
surpresa. O gigante da Filosofia do Século XX, Bertrand Russel, um agnóstico,
também não previa consequências filosóficas imediatas da Teoria Quântica.
Em 1965 Jacques Monod
publicou “O acaso e a necessidade”. Esse livro provocou furor no mundo
científico e leigo porque, pela primeira vez, a questão da evolução foi
colocada cientificamente em termos de interação entre projeto imanente à
estrutura natural do ser vivo (necessidade) e o acaso (mutações genéticas
aleatórias, portanto, sem projeto). Daí em diante muita coisa mudou em pesquisa
biológica básica, inclusive a descoberta do funcionamento dos retrovirus
(informação genética retrotransmitida do RNA para o DNA, e replicada por este,
contra o padrão geral). A base da ciência biológica, porém, continua sendo o reconhecimento da enorme
complexidade do funcionamento do DNA como codificador da vida.
Essa complexidade não
desanimou cientistas céticos ou ateus, que se esforçaram por buscar explicações
naturais não só para os fenômenos da evolução mas também para os relacionados
com o próprio surgimento da vida em termos evolucionários. A seleção natural
como mecanismo da evolução na espécie parece fato bem estabelecido pela
pesquisa arqueológica. A evolução de uma espécie para outra pelo mesmo
mecanismo é menos convincente, já questionada por Monod, que teve que recorrer
ao acaso, pois há pouca evidência de reversão de uma característica adquirida
por seleção natural para um DNA (exceto no caso do retrovirus). Já as
tentativas de explicação do aparecimento da vida em termos naturais têm
recorrido a expedientes altamente especulativos, que vão desde a síntese de
Oparin (1936) até os mais recentes experimentos realizados por Urey-Miller
(1953) e reiterados depois dele (2008).
O que revelam tais
experimentos? Revelam que, em condições supostas como sendo as da terra
primitiva, elementos químicos simples (amônia, hidrogênio, carbono e água,
acrescidos em experimentos posteriors ao de Oparin de elementos mais realistas
presentes na terra primitiva, como os gases expelidos pelos vulcões), ao serem
submetidos a descargas elétricas e ciclos de temperatura dão origem a moléculas
complexas de aminoácidos, e eventualmente adenina, constituintes das proteínas
e do ácido nucleico. Entretanto, acaso a presença numa “sopa” primitiva ou na
argila de moléculas essenciais à vida
determinaria o surgimento da vida por processos físico-químicos naturais? E não
seria mais estranho que esses aminoácidos não aparecessem se seus elementos
básicos foram intencionalmente colocados onde são sintetizados?
A probabilidade de uma
molécula de DNA, essência da vida, ser constituída por acaso a partir da
agregação de ácidos nucleicos foi calculada: é uma fração de vários decilhões.
Os proponentes da vida natural propuseram então que a vida tenha surgido na
forma de uma proteína que conseguiu, por competição e seleção natural,
propriedade replicadoras, evoluindo dessa forma e tornando-se um DNA: também
essa probabilidade foi calculada (ver Robert Shapiro, “Origens”) e desafia a
razão. A proposição foi então refinada, em especial por Dawson, argumentando
que as moléculas primitives de proteína poderiam ser funcionais com menos
aminoácidos, talvez cinco. Isso aumenta a probabilidade do evento aleatório.
Assim mesmo, fica a questão da transição de uma proteína para um DNA. Em outras
palavras, para a questão de uma teoria realista para o aparecimento da vida
natural, auto-replicadora, evolucionária e que transforma em ação energia do
ambiente.
É evidente que o papel da
Ciência é continuar buscando uma explicação natural para a origem da vida e a
diversificação das espécies. Entretanto, pelos resultados obtidos até aqui e
pelos imensos desafios que isso representa para a investigação futura, é
possível que haja uma barreira intransponível à frente. A vida, tal como as
aporias da Mecânica Quântica, pode não se deixar revelar ao entendimento humano
de uma forma completa. Vivemos, mas não sabemos sequer definir a vida. Da mesma
forma sabemos o que é luz por intuição e por mensuração de seus efeitos, mas
não sabemos o que é em sua natureza última enquanto fenômeno físico- quântico,
poise ela se nos apresenta como onda ou partícula, dependendo da posição do
observador. Afinal, o que é em linguagem comum?
A própria estrutura da
Física está permeada de constantes inexplicadas que fazem funcionar as equações
como espelhos da realidade cósmica porém sem se deixarem explicar. São mais de
40, começando pela constante gravitacional de Newton até a própria velocidade
da luz, o raio do eletron, a constante de Planck etc etc. No caso da Mecânica
Quântica, porém, muitos outros eventos, além da luz, desafiam a nossa própria
capacidade de descrevê-los em linguagem comum. Sua linguagem é a matemática,
porém não a matemática determinista, mas a probabilística: se medimos a posição
de uma partícula correlacionada com outra, não podemos medir exatamente seu
momento; só podemos calcular a probabilidade deste. Por outro lado, avanços
experimentais recentes na Mecânica Quântica detectaram transferência
instantânea de informação, o que viola o princípio físico até então universal
da velocidade da luz como limite intransponível de velocidade.
Voltemos, agora, ao
criacionismo e ao evolucionismo. Primeiro, não vejo associação inevitável entre
criacionismo e religião. Segundo, não sendo religioso, obviamente que não
acredito na Bíblia como uma crônica realista da criação do mundo e do homem: em
essência, é um código histórico, moral e político, em grande parte metafórico,
para organização de um pequeno grupo semita, como Estado teocrático, no Oriente
Médio há alguns milhares de anos. Terceiro, não vejo as religiões, a despeito
das degeneracões históricas e de muitos desvios contemporaneos, como fontes de
males sociais e políticas em caráter geral. Como instituições naturais,
humanas, estão sujeitas às mesmas vicissitudes de outras manifestações
culturais e políticas ao longo da história da humanidade.
Embora o criacionismo
recubra uma lacuna do conhecimento científico, não é como preenchedor dessa
lacula que surge a justificação de um Criador natural. O Criador que preenche
lacunas estaria negando a Ciência atual e futura. O conceito de Criador
natural, ao contrario, é afirmativo: como Criador original, ele se revela na
própria Criação em sua natureza determinista e quântica, refletida em aspectos
fundamentais da natureza como a Física e, na Biologia, no próprio
evolucionismo. E desde que possamos entrar em sua mente e investigar o objetivo da Criação, pelas
características desta podemos deduzir a natureza do próprio Criador e desvendar
aspectos da Criação que de outro modo, no quadro do deísmo simplório, é
iningeligível ou remetido aos dogmas: livre-arbítrio, morte, diferenças
sociais, ética etc.
Uso propositadamente o
termo Criador e não deus porque este último é repleto de ambiguidades,
sobretudo quando as religiões lhe conferem diferentes atributos de poder, de
bondade etc. Já a palavra criador contém em si um sentido sintético,
auto-explicativo: aquele que criou ou que cria. Criou o que? Criou o princípio
do Universo, ou seja, as condições físicas para a manifestação primordial do
Big Bang e as condições físico-químicas posteriores da vida, e o próprio
princípio da vida, ou seja, as condições bióticas originais para o
florescimento de um DNA como codificador de organismos vivos. Claro, se isso é
intencional tem que ter um propósito. E não é difícil achar esse propósito se
simplesmente olharmos a nossa volta: todo o processo evolutivo a que estamos
submetidos nos empurra para criar, seguindo a natureza do próprio Criador.
A metáfora bíblica aqui
é inevitável: crescei e multiplicai-vos. Tomada num sentido amplo, significa
preservar o organismo individual e ao mesmo tempo procriar mediante um processo
inevitavelmente criativo. Mas esse não seria, justamente, a motivação do
próprio Criador, tendo em vista o prazer de criar outros criadores? Não estaria
aí a origem do livre-arbítrio? Sim, porque uma criação determinista implicaria
fazer robôs que se repetiriam indefinidamente, sem criar, sem inventar nada. Ao
dar ao ente criado a prerrogativa da
escolha, através do livre-arbítrio, o Criador transferiu ao homem, no ápice do
processo evolucionário, o seu próprio atributo principal de transformar o velho
e o estático no novo e movente. Também entre os seres irracionais e igualmente
nos vegetais a regra da criatividade continua prevalece.
A Criação, por outro
lado, implica diversidade, pois criar o novo é criar o diferente. Para isso, na
base do processo evolucionário está a reprodução sexuada, probabilística, que,
no nível superior da Criação, supõe o encontro do homem e da mulher para criar
um indivíduo parecido com ambos, porém diferente deles. Esse processo
dialético-probabilístico vai presidir a todo o fenômeno evolucionário tanto no
mundo abiótico quanto biótico, assim como no mundo social e político.
Equilíbrio entre interesse individual e coletivo, entre individualismo
exacerbado e democracia social, entre amoralismo e moralismo, cada um desses
aspectos retrata uma característica comum a todas as populaces humanas
organizadas numa curva normal, sendo este o conceito básico para o cálculo de
probabilidade do comportamento de populações.
Uma realidade movida por
um impulso original criativo tendente à diversidade, ambos descritos por curvas
de probabilidade, revela um Criador que tem, em sua natureza, aspectos
quântico-deterministas. Dessa forma, quando Monod fala em acaso, ele não
precisa de ser interpretado imediatamente como um ateu: o acaso, outro nome
para probabilidade, pode estar no plano evolucionário do Criador junto com o
determinismo. E é justamente isso que postula o grande matemático
norte-ameriano David Bartholomew, que conheci por textos recentemente, depois
de ter escrito “A Razão de Deus”. Defendemos o mesmo conceito de um plano de
Criação que inclui o acaso – no caso dele, como católico, no meu, como não
religioso.
Quanto a Richard
Dawkins, ele gasta grande parte dos livros dele atacando as religiões, uma
outra parte defendendo o evolucionismo das espécies vivas e muito pouca coisa
discutindo a origem da vida em si, que remete a processos físico-químicos
análogos aos da competição e seleção natural dos seres vivos. O conceito mais
difundido dele é o do gene “egoísta” posteriormente estendido a aspectos
culturais com o conceito de meme (depois abandonado). Em sua concepção, toda a
evolução se dá no nível de mudanças genéticas, sendo que os genes “submetem” os
organismos a seus impulsos de reprodução e diversificação. É uma tese altamente
especulativa, mas, curiosamente, não entra em contradição com a hipótese de um
Criador natural quando limitada ao terreno biológico. Mas contraria a ideia de
um Criador animado por um impulso de criar outros criadores no nível do DNA,
num processo determinístico-probabilístico.
Acredito que existe uma
porta aberta para entender a Criação e dela inferir um Criador no nível
filosófico, inclusive quanto ao fato de o Criador não se revelar à pesquisa
científica, neste caso devido a sua natureza físico-quântica inapreensível pela
linguagem humana. Também sou bastante cético quanto à possibilidade do
entendimento da vida, ou seja, a passagem do abiótico para o biótico no nível
científico. Contudo, teses como a de Dawkins me deixam apreensivo quanto às
consquências éticas do ateísimo. O gene egoísta não me parece propriamente uma
hipótese científica, mas uma justificação em nível genético do darwinismo
social de Spencer (anterior a Darwin), de Margaret Thatcher e de Reagan. O
primeiro experimento para “provar” a origem natural da vida foi realizada por
Oparin, igualmente ateu, um serviçal de Stalin muito ligado ao mistificador
Lysenko, assim como eram ateus os eugenistas do III Reich.
Claro que isso não
significa que todo ateu tenha uma ética não humanista. Significa simplesmente
que atribuir ao deísmo as grandes mazelas históricas é um excesso. Houve muitas
guerras religiosas na Europa, sobretudo antes dos tratados de Westfalia, mas as
maiores catástrofes bélicas de todos os tempos, a Primeira e a Segunda Guerra
Mundial, assim como as guerras napoleônicas dos séculos XVIII e XIX, foram
travadas por razões geopolíticas, políticas, de honra etc etc, sem qualquer
resquício de motivação ideologica. Em termos contemporâneos, exceto no caso de
grupos radicais pouco representatives do sistema central de crenças, não vejo
nenhuma ameaça especial da crença em Deus e no seu ensino em escolas
religiosas. Também não acho que se deva ensinar ateísmo em escolas públicas. A
questão da existência ou não de um Criador deve ser apresentada como um tema
aberto, equilibrado entre a Ciência e a Filosofia, a ser discutido até o fim
dos tempos como estamos fazendo aqui.
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