Por Jean Salem*
Nos nossos dias a
atmosfera de mercantilização generalizada dos objectos e dos seres humanos
facilita-nos mais uma vez a compreensão imediata do texto do Manifesto.
Definitivamente, há muitas coisas que poderemos encontrar em Marx adaptando-as,
claro está, à nossa própria época. Por isso é que o marxismo se mantém, como
filosofia, inultrapassável do nosso tempo.
Marx, mais actual que
nunca
1. Marx não é apenas um
«clássico» do pensamento filosófico. Estou convencido que Marx é hoje mais
contemporâneo para nós do que era há trinta ou quarenta anos! Tomemos, por
exemplo, o Manifesto do Partido Comunista. Lembro-me de, quando o lia pela
primeira vez, ir perguntar ao meu pai: que significa essa «concorrência» entre
operários que os autores falam em várias ocasiões? A concorrência entre
capitalistas, a concorrência mesmo no seio da burguesia, isso era na verdade
evidente; mas a possibilidade de que existisse uma concorrência entre
trabalhadores não parecia tão evidente, numa época em que os sindicatos eram
fortes, em que a classe operária estava poderosamente organizada, numa época de
pleno emprego (ou quase) e de políticas «keynesianas». Hoje em dia, pelo
contrário, qualquer pessoa remetida para empregos cada vez mais precários e
menos frequentes compreenderia isto desde a primeira leitura: efectivamente, o
sistema repete-lhe constantemente «se não estás contente, e mais ainda se
protestares, há mais dez que estão dispostos a ocupar o teu lugar!». Penso
também naquele trecho em que Marx e Engels falam da prostituição, na altura
muito alargada entre a classe operária inglesa: não era um fenómeno de massas
na década de 1960. Mas, nos nossos dias, depois da grande «libertação» de
1989-1991, há mais de 4 milhões de mulheres que foram – literalmente –
vendidas: e esta atmosfera de mercantilização generalizada dos objectos e dos
seres humanos, a nossa, facilita-nos, mais uma vez a compreensão imediata do
texto do Manifesto. Definitivamente, há muitas coisas que poderemos encontrar
em Marx adaptando-as, claro está, à nossa própria época. Por isso é que
continuo a acreditar que o marxismo se mantém, como filosofia, inultrapassável
do nosso tempo.
Em primeiro lugar não se
pode falar, a não ser por graça, de desaparecimento da classe operária, visto
que a China e a Índia, que têm quase metade da população humana, se converteram
nas duas principais manufactureiras do mundo que alimentam o comércio mundial.
Além disso, subsistem alguns operários ainda noutros lugares, não acham? Isto,
sem contar com todos esses imigrantes que trabalham na Europa ou nos Estados
Unidos, amiúde clandestinamente e, mais amiúde ainda, invisíveis ou quase. Isto
parece-me dificilmente contestável… Na realidade, estas considerações relativas
à pretensa extinção da classe operária parecem-me euro – ou «ocidental»-centrica.
Em grande parte nascem sobre o húmus da antiga exploração colonial; germinam
num mundo em que a classe operária ocidental pôde e pode continuar (ainda que
em menor medida) a beneficiar, embora mais exiguamente, de migalhas provenientes
da pilhagem de países pobres. Noutros tempos esta realidade contribuiu para
prevenir a explosão de uma verdadeira revolução na Europa, e as estruturas
capitalistas puderam assim manter-se, embora muito contestadas por correntes
políticas poderosamente organizadas. Desindustrializai à toa; devastai regiões
inteiras fechando os locais de produção em que antes se concentravam muito
visivelmente operários qualificados. Não apanheis nunca o metro antes das 7H30
da manhã; olhai fixamente para a televisão, que não vos dá quase nunca a
palavra; e sobretudo, não viajeis: tereis então suficientes razões para não ver
a classe operária e até mesmo para imaginar que está morta…
Para isso, e em muitas
ocasiões como foi o caso de 1981, a social-democracia serviu de «salva-vidas»
do sistema e de amortecedor extremamente eficaz para deitar por terra qualquer
tentativa de alteração social. Mas a crise está aí. Aí mesmo. Rir-se-iam na
nossa cara se na década de 1960 algum de nós tivesse o atrevimento de defender
a tese da pauperização absoluta da classe operária nos países capitalistas
desenvolvidos: então, nos EUA uma família operária podia, sem dificuldades de
maior, ter dois carros… Daí para cá não acabámos de acordar das ilusões de um
passado muito recente (o da época que o pensamento único decidiu baptizar de
«Os Trinta Gloriosos Anos»). Estamos confrontados com um mundo preenchido de
insuportáveis desequilíbrios, um mundo em que o poder aquisitivo dos que
trabalham (e dos que estão impedidos de o fazer) se reduz à sua expressão mais
simples.
Em suma, apesar da
destruição da escola pública, da saúde pública, de tudo aquilo que foi
conquistado graças à luta, subsistem ainda, sem margem para dúvidas,
possibilidades de concentrações, de alianças, não só de operários franceses e
operários italianos, europeus, mas também de operários europeus e trabalhadores
«extracomunitários», como acontece no vosso país. Todos têm, fundamentalmente,
interesses convergentes, sejam quais forem as diferenças existentes entre os
seus percursos, as suas crenças privadas, os seus ritos, os seus hábitos
alimentares. Sejam quais forem os mexericos do fascismo vindouro, ou que
poderá, pelo menos, voltar. Toda aquela gente é, com efeito, mercadoria humana.
Uma mercadoria cada dia tratada com menos consideração.
A crise
2. Não é segredo para
ninguém: o sentimento de declínio invadiu a maior parte da Europa. Nos nossos
países evoca-se hoje incessantemente, com uma nostalgia não desprovida de
amnésia, os «30 gloriosos» (que não eram gloriosos para toda a gente!), isto é,
os 30 anos de expansão económica, de pleno emprego e de crescimento industrial
que se seguiram ao fim da segunda guerra mundial. Até ao fim da década de 1970,
inclusive aos olhos de muitos comunistas, a ideia de que nos países da OCDE a classe
operária pudesse um dia empobrecer parecia uma ilusão. O capitalismo ocidental
parecia destinado a puxar indefinidamente para «cima» o conjunto das rendas.
Com a crise surgida em
1973, estas utopias começaram a perder todo o crédito. Dezenas de milhares de
pessoas começaram a dormir nas ruas. O desemprego começou a respeitar a mais de
26 milhões de pessoas na Europa: na Grécia, na Irlanda ou em Portugal a
história repete-se e verdadeiros fluxos migratórios começam a formar-se em
direcção ao Canadá ou à Austrália. Por falta de meios, os sectores públicos
deterioram-se: os transportes urbanos, mas também o sector da saúde, o da
educação, etc.. Os salários são cortados, comprimidos, ao ponto de quase um
francês em cada seis viver actualmente sobre a «linha de pobreza». As camadas
médias estão confrontadas com dificuldades que, há 20 anos, pareciam
impensáveis. Em resumo, a afirmação do jovem Engels segundo a qual a sociedade
capitalista tende a dividir o mundo em milionários e pobres (…bis die Welt in
Millionäre und Paupers geteilt ist) [1] não poderá surpreender ninguém.
Do ponto de vista
ideológico é preciso constatar que, como noutras épocas de crise, a mobilização
dos trabalhadores (ou dos não trabalhadores!) em luta pela sua sobrevivência
económica e social depara com redobradas dificuldades. O fim da União Soviética
e a forma como esta foi apresentada pela propaganda oficial formataram muitos
dos que tinham 15 ou 20 anos em 1968 nas suas viagens e na sua adesão, mais ou
menos total, ao sistema vigente. O oportunismo afluiu aos partidos comunistas
oeste-europeus que pareciam considerar como dados intangíveis o estado da muito
relativa «democracia» e da ainda mais relativa prosperidade que prevalecia
ainda na Europa até à década de 80, mesmo quando esta prosperidade começava a
marcar passo, e esta «democracia» estava prestes a ser sistematicamente
destroçada (votações espezinhadas, guerra permanente contra as liberdades
públicas e os direitos sindicais, crescimento exponencial das medidas de
controlo social e da confusão burocrática neoliberal, etc.).
E é assim que a Europa,
em meados dos anos 1980, pôde contar com 17 governos conduzidos por
social-democratas, com os resultados que se conhecem: financeirização da
economia em demasia, crescente descomprometimento do Estado salvo no que
respeita à «vigilância nocturna» (exército, polícia) perfeita confusão entre da
«direita» e «esquerda», que se revezam desde esta época na imposição aos povos
de um plano de austeridade após outro (lembremos a propósito o que disse um dia
Gianni Agnelli, o patrão da FIAT: «quando as coisas se complicam a tal ponto, a
esquerda faz melhor o trabalho que a direita»). Tal como em França onde no
espaço de trinta anos, a parte da riqueza produzida que passou da remuneração
do trabalho, isto é dos salários, para a remuneração do capital, isto é,
sobretudo dividendos, corresponde a 10 pontos do Produto Interno Bruto (PIB)…
O nosso seminário “Marx
no século XXI” (na Sorbonne)
3. Foi neste contexto em
que as actuais lutas operárias são, infelizmente e por enquanto, essencialmente
defensivas, neste clima de anticomunismo generalizado com um perfume de
pré-guerra, que lançámos em 2005 com alguns colegas um seminário semanal chamado
«Marx no século XXI». Na Sorbonne. Para mostrar, ali, a presença do marxismo
que alguns diziam estar «morto» desde há muito tempo. Por vezes este seminário
junta 200 pessoas, nunca menos de 100. Vinde ver! Tomai nota deste endereço:
http://chspm.univ-paris1.fr/spip.php?article271.
Aí vereis que filmámos
mais de 150 comunicações feitas por quase outros tantas/os convidadas/os.
Dezenas de milhares de pessoas acompanham semanalmente na internet as nossas
conferências e outras jornadas de estudo.
Guardadas as distâncias
(!), a ideia que presidiu ao lançamento deste seminário foi um pouco análoga à
que, noutros tempos, levou Lenine a fundar o seu jornal Iskra, um jornal
destinado, dizia, a reunir, a federar mil energias até então dispersas na
Rússia dos czares. Para nós, tratava-se de convidar, uma após outra, todas
aquelas e todos aqueles que, até aqui, trabalhavam ou julgavam trabalhar «no
seu recanto», isoladamente, nas condições actuais de pesquisa em França e fora:
pois em França particularmente as pesquisas marxistas foram marginalizadas
desde há muito tempo, quando não foram mesmo censuradas.
É claro que a vinda de
Domenico Losurdo, Enrique Dussel, David Harvey ou de George Labica, André
Tossel, Daniel Bensaïd, Michael Löwy, Slavoj Zizek, etc., constituíram grandes
momentos do seminário! E é também claro que, do ponto de vista político,
sentimo-nos muito próximos de pessoas como Losurdo ou Labica (este último
infelizmente já desaparecido). Quanto a alguns outros dos nossas/os amigas/os e
convidadas/os, pesar da estima que tenho por eles, tenho vários desacordos com
eles, particularmente no que respeita à sua maneira de abordar a questão do
muito necessário balanço da experiência do «socialismo real».
Dito de outra maneira,
vemo-nos reduzidos neste momento a adaptar-nos ao que Immanuel Wallerstein
chamou os «mil marxismos»: aí está o efeito de uma situação tão apaixonante
como inquietante, de uma situação que é a nossa, e que se caracteriza, como
dizem, por uma cruel falta de organização revolucionária na Europa, no momento
em que o sistema vacila nas suas bases.
O trabalho humano e o sistema do dinheiro
4. Como não é possível
falar de tudo, falarei agora do jovem Marx, o que não significa (acaso será
útil que o precise?) que esqueça o Manifesto do Partido Comunista ou o Capital!
Começarei por lembrar um belo texto de Cícero (Dos Deveres, II, IV, 14-15) que
me parece, além dos séculos, susceptível de esclarecer o presente trecho:
«Pensa ainda nos aquedutos, no desvio dos cursos de água, na irrigação dos campos,
nos diques contra as inundações, nos portos construídos pelas nossas mãos; como
seria possível isso tudo sem o trabalho dos homens? Através destes exemplos,
entre muitos outros, fica claro que o benefício e a utilidade que retiramos de
coisas inanimadas não poderiam ser alcançados de nenhum outro modo, a não ser
pelos braços e o trabalho dos homens. Quanto aos benefícios e as vantagens que
obtemos dos animais, como poderíamos obtê-los se os homens não viessem
ajudar-nos? Uma vez que os primeiros que descobriram o jeito de empregar cada
espécie de animais foram certamente os homens; desde essa época, não poderíamos
sem o trabalho dos homens nem apascentar os animais, nem domesticá-los nem
abrigá-los, nem tirar proveito útil, nem especialmente exterminar os animais
daninhos, nem apropriar aqueles que podem servir para nosso uso. […] É só por
isso que a civilização humana se distingue da maneira de viver dos animais».
Então, para o jovem
Marx, para o Marx dos Manuscritos de 1844, a via de acesso ao estudo do
trabalho é a análise dos sintomas da sua perversão. Para Marx trata-se de
descrever a alienação nas suas formas ideológicas para regressar às suas formas
concretas, à sua origem: àquilo que se chama o trabalho alienado.
A alienação económica é
claramente designada, em 1844 como a da vida real. A miséria resulta da
essência do trabalho actual. Do mesmo modo que noutro tempo se opuseram amo e
escravo, mais tarde patrício e plebeu, depois soberano e vassalo, vemos hoje
oporem-se o que não trabalha e o trabalhador, escrevera Gans, um professor
hegeliano a cujos cursos Marx assistira em Berlim (reconhece-se aqui uma frase
que se encontrará no Manifesto). Assim, o que se opõe à emancipação da
humanidade é a desigualdade social que levanta os homens uns contra os outros.
A realidade é esta: se é
bem verdade que o trabalho produz maravilhas para os ricos, ele é a miséria
para o operário. Adam Smith, o fundador da economia política clássica, afirma
que, na origem, «o produto inteiro do trabalho pertence ao operário» [1]. Mas
reconhece ao mesmo tempo que é a parte mais pequena e estritamente
indispensável que lhe cabe. A economia política burguesa explica assim ao mesmo
tempo que tudo se compra com o trabalho, e que os proletários estão obrigados a
venderem-se todos os dias. Por um mesmo movimento do pensamento
proporcionaram-se os meios para não reconhecer a alienação do trabalho. A sua
objectividade de fachada ratifica, consagra a alienação dos homens. Não se
preocupa com a vida do homem, e é essa a sua infâmia.
Quando considera o
proletário somente como um operário, quando vê no homem apenas uma máquina de
consumir e produzir, um «burro de carga», quando considera a vida humana como
um capital, quando abandona o homem no tempo em que o médico não trabalha, o juiz
e o coveiro e o preboste de mendigos, dizem ao operário: se por acaso não
tiveres trabalho, portanto nem salário – como não existes para mim como homem
mas apenas como operário, podes morrer de fome e ser enterrado. A categoria de
salário assume assim para o economista a de mínimo vital para o operário e a
sua família, - mínimo para que a raça dos operários não desapareça. E esta é
indiferença dos teóricos a respeito dos homens encontra uma simbologia perfeita
no modelo da lotaria proposto por Smith: «Numa lotaria perfeitamente igual, os
que tiram os bilhetes premiados devem ganhar tudo o que perdem os que tiram os
bilhetes sem prémio. Numa profissão em que vinte fracassam por cada uma que tem
sucesso, este último tem de ganhar tudo o que poderia ter sido ganho pelos
vinte que fracassaram» (that one ought to gain all that should have been gained
by the unsuccessful twenty) [2]. E o reino do dinheiro manifesta-se,
evidentemente, pela proliferação anárquica das necessidades, sem qualquer
relação com as exigências naturais do homem.
Então, se o trabalho só
aparece no discurso dos economistas sob a forma da actividade que proporciona
um ganho, isso quer dizer que o operário no «estádio da economia» (é assim que
Marx chama então ao capitalismo), já não pode ter mais actividade do que para
adquirir os meios de subsistir. Por isso, o objecto do trabalho é indiferente
para o operário, pois este vê-se espoliado por outro homem, pelo capitalismo
que o domina como deus domina o seu servidor, no preciso momento em que os
milagres dos deuses se tornam supérfluos devido ao trabalho humano. O que conta
para o trabalhador é quase exclusivamente a remuneração em dinheiro que o
capitalista aceitará dar-lhe depois da operação de produção.
E a alienação do objecto
do trabalho (o facto de ter que o ceder a um outro) mais não é do que o resumo
da alienação, do desapossamento na actividade de trabalho própria. O operário,
ao depender cada vez mais de um trabalho penoso unilateral, mecânico, somente
trabalha para manter a sua vida, debilita-se com esse trabalho, que perdeu para
ele a aparência de manifestação de si-próprio. Todo o seu penoso trabalho é
exterior, estranho ao operário, já que não realiza a sua essência, mas pelo
contrário encontra nele a sua negação. Definitivamente, o trabalho deveria ser
gozo da vida, prazer e o operário não se sente bem com ele próprio mais do que
fora do trabalho.
A necessidade social e a
necessidade humana não têm mais nada de comum, o individuo é, em terceiro
lugar, totalmente separado do que Marx, depois de Feuerbach, chama a vida
genérica, o género (die Gattung). Algo assim como a «essência» do homem. Marx
abandonará mais tarde esta categoria, no fim de contas muito abstracta. Mas o
essencial do que afirma ainda é actual: o trabalho lucrativo aliena, destrói a
natureza do homem, isto é, o seu ser-sociável. O trabalho, a vida foram
conduzidos a um mero meio de sobrevivência. A «essência» do homem tornou-se
assim o meio da sua existência.
A indústria constitui o
«livro aberto» das forças humanas essenciais. Quase não encontramos hoje
objectos puramente naturais: a actividade humana é «a base de todo o mundo
sensível tal e como existe nos nossos dias [3]. E no entanto, como se tornou
alheio ao produto do seu trabalho, para a actividade vital e para o ser
genérico, o homem tornou-se estranho para o outro homem. O outro é um poder
hostil ou, no máximo, um objecto que se pode utilizar para satisfazer
interesses egoístas. O capitalismo leva assim até o fim o que Marx chamará mais
tarde no Capital a reificação das relações sociais, isto é, a dominação da
matéria inerte sobre os homens. Leva ao paroxismo o que Georgy Lukács chamará
ainda mais claramente, em História e consciência de classe (1923) a «dominação
da economia sobre a sociedade».
Por isso, depois de
indicar desde 1843, as insuficiências do que se chamava o «partido político
histórico», Marx nesses manuscritos redigidos em 1844, parece abraçar a ideia
de que «não é a crítica, mas o proletariado a força motriz da revolução». Esta
ideia, o Manifesto, tal como toda a actividade prática, dar-lhe-ão vida,
fá-la-ão passar aos factos.
Lenine, depois de Marx
5. Como sabeis, Marx
declara na 11ª das suas Teses sobre Feuerbach que até àquele momento os
filósofos não fizeram mais do que interpretar o mundo, mas que a partir desse
momento trata-se de o transformar. Na sua própria biografia, podemos ver que
colaborou na Gazeta Renana, proibida em 1843. Viu-se então obrigado a exilar-se
em Paris. Em 1845 foi expulso de França a petição de Humboldt, o embaixador da
Prússia, e vai então para Bruxelas. A seguir, depois do sismo das revoluções de
1848, a reacção triunfa em toda a Europa. De Junho a Agosto de 1849, Marx tem
de se refugiar de novo em Paris (de onde é de novo expulso), e depois em
Londres, onde ficará quase todo o tempo. Conheceu grandes dificuldades
materiais, uma miséria extrema, a ponto de a sua mulher e ele perderem quatro
dos seus sete filhos. Definitivamente, Marx teve a vida de um militante
revolucionário, de um homem comprometido, assediado, e não a de um filósofo de
gabinete. Foi também em Londres que em 28 de Setembro de 1864 participou na
fundação da Associação Internacional dos Trabalhadores; e é em nome do Conselho
Geral desta 1ª Internacional que redigirá, em 1871, três «discursos» em que
exalta a obra dos communards parisienses e analisa as causas da sua derrota.
(«sabes, escreve em Junho ao seu amigo Kugelmann, que durante o tempo todo da
última revolução parisiense fui denunciado como o grande chefe da Internacional
pelos papéis de Versalhes e pela repercussão entre os jornalistas daqui. […] E
agora, além disso, o Discurso […] Provoca um ruído infernal e tenho a honra
neste momento, de ser o homem mais caluniado e mais ameaçado de Londres»).
As seis teses que
resumem o essencial daquilo que Lenine disse mais tarde a respeito da ideia de
revolução, e também da acção própria que Lenine conduziu na Rússia no início do
século passado, parecem assim, muito logicamente, prolongar a postura e a
inspiração fundamental de Marx. Para acabar permitam-me referir uma vez mais
estas seis teses:
As seis teses que para
mim resumem o essencial daquilo que Lenine disse, mais tarde, a respeito da
ideia de revolução, e também da própria acção que Lenine leva avante na Rússia
no início do século passado, parecem assim prolongar muito logicamente a
postura e a inspiração fundamental de Marx. Para acabar, permiti-me referir,
mais uma vez, estas seis teses:
1) A revolução é uma
guerra. Lenine compara a política com a arte militar e sublinha a necessidade
da existência de partidos revolucionários organizados disciplinados, pois um
partido não é um clube de reflexão (dirigentes do Partido Socialista: obrigado
pelo espectáculo!).
2) Para Lenine, tal como
para Marx uma revolução política é também, e sobretudo, social, isto é uma
mudança na situação das classes em que a sociedade se divide. Isto significa
que é sempre conveniente perguntar qual a natureza real do Estado, da
«República». Assim, a crise do Outono de 2008 mostrou, com evidência, como nas
metrópoles do capitalismo o Estado e o dinheiro público podem estar ao serviço
dos interesses dos bancos e de um punhado de privilegiados. Dito de outro modo,
o Estado não está, em absoluto, acima das classes.
3) Uma revolução faz-se
de uma série de batalhas, e cabe ao partido de vanguarda, em cada etapa da
luta, escolher a palavra de ordem adaptada à situação e às possibilidades. Sem
isso, o movimento esgota-se e desanimam os que esperaram em vão que se lhes
indicasse a natureza precisa dos objectivos a atingir e o sentido geral da
marcha…
4) Os grandes problemas
da vida dos povos sempre se resolveram pela força, também sublinha Lenine.
«Força» não significa, longe disso, violência aberta ou repressão sangrenta contra
os outros! Quando milhões de pessoas decidem convergir num lugar, por exemplo
na Praça Tarr no centro do Cairo, e fazem saber que nada os fará recuar frente
a um poder detestado, estamos já, e em pleno, no registo da força. Segundo
Lenine, trata-se de atacar as ilusões de um certo cretinismo parlamentar ou
eleitoral que conduz, por exemplo, á situação em que estamos agora: uma
«esquerda» concentrada quase exclusivamente nos prazos de que uma imensa massa
de cidadãos não espera, e com razão…, quase nada.
5) Os revolucionários
não devem desprezar a luta pelas reformas. Lenine estava consciente de que em
determinados momentos uma dada reforma pode representar uma concessão
temporária, ou mesmo um rebuçado, concedido pela classe dominante para melhor
adormecer os que resistem. No entanto, considera que uma reforma constitui uma
base nova para a luta revolucionária.
6) Depois do início do
século XX, a política começa onde estão os milhões ou mesmo dezenas de milhões
de homens. Ao formular esta sexta tese Lenine pressente que os lares da
revolução tendiam a deslocar-se cada vez mais para os países dominados,
coloniais ou semicoloniais. De facto, desde revolução chinesa de 1949 até ao
período das independências, na década de 60 do século passado, a História confirmou
plenamente este clarividente prognóstico.
Definitivamente, há que
ler Lenine, depois do dilúvio e do fim do «socialismo real». Lê-lo e relê-lo.
Há que ler Marx. Ou relê-lo. Há que estudar os seus escritos sempre tão
actuais. Para preparar o futuro.
Notas:
[1] SMITH (A.),
Recherches sur la nature et les causes de la richesse des nations [1776], I,
VIII ; trad. G. Garnier [revue par A. Blanqui], Paris, GF Flammarion, 1991, t.
I, p. 135.
[2] Ibid., I, X, 1ª
secção : “Des inégalités qui procédent de la nature même des emplois” ; ob.
cit., t. I, p. 180.
[3] Marx e Engels
escreveram isto em 1845 na Ideologia alemã.
Compostela, Galiza, 20
de Abril de 2013
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